Covid-19: O “paciente zero” ainda não foi encontrado

Identificar a primeira pessoa infectada com o vírus é importante para prever a evolução e disseminação da doença mas detectar primeiros casos de transmissão local pode ser ainda mais crucial.

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Uma mulher em Wuhan, o epicentro da epidemia, a 28 de Fevereiro REUTERS/Stringer

Não se trata de encontrar um culpado mas, bem pelo contrário, de conseguir uma pista importante para o estudo de uma doença. Se soubermos onde e como começou um problema de saúde pública de nível internacional, como o novo coronavírus, conseguimos prever melhor a evolução do vírus e da doença. Mas, apesar de existirem algumas suspeitas, os cientistas ainda não identificaram o chamado “paciente zero” no surto que foi conhecido em Dezembro, na China. E à medida que o número de pessoas infectadas cresce, a tarefa torna-se cada vez mais difícil.

Em vários títulos de jornais de diferentes partes do mundo lemos notícias sobre a procura do paciente zero “local”. A busca do primeiro caso no Reino Unido, em Itália, na Coreia do Sul, em Singapura, e por aí adiante. São todos considerados “pacientes zero” e fundamentais para seguir o rasto da doença e vigiar os contactos e evolução. Nem sempre os cientistas conseguem chegar a este primeiro indivíduo. Mas a pista mais importante de todas estará no primeiro doente infectado com o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). Já se sabe quem é? Não, ainda não há certezas. Não tem necessariamente (embora isso seja provável) que coincidir com a primeira pessoa infectada a manifestar sintomas da doença (Covid-19).

Conhecer a primeira pessoa infectada por este vírus pode trazer respostas sobre a epidemia. Pode, por exemplo, fornecer informações sobre a fonte de contágio e sobre o circuito de transmissão. Para já, mantém-se as suspeitas que surgiram no início do surto e que apontavam para uma ligação deste vírus aos morcegos. Na altura, falava-se já especificamente sobre os morcegos de subespécies do género Rhinolophus, que são abundantes na Ásia, no Médio Oriente, em África e na Europa.

Pouco tempo depois, foram publicados alguns resultados de investigações preliminares que sugeriam que o pangolim também poderá ter tido um papel (de intermediário entre o morcego e os humanos) como hospedeiro deste vírus. A hipótese poderia fazer algum sentido se tivermos em conta que este animal é consumido na China e que poderia estar a ser vendido no mercado de Wuhan onde, para já, se encontra o mais provável epicentro da epidemia. No entanto, o eventual papel do pangolim nesta história complexa não foi ainda confirmado pelos peritos da Organização Mundial da Saúde (OMS) que estão a investigar esta epidemia.

Nuno Faria, professor de epidemiologia genómica na Universidade de Oxford, no Reino Unido, defende que mais importante do que encontrar o paciente zero é “ter sistemas de vigilância sistemáticos e de sentinela que possam detectar rapidamente os primeiros casos de transmissão local”. “Quanto mais cedo detectarmos casos de um novo surto, mais rápido conseguimos encontrar diagnósticos, vacinas e entender os padrões de disseminação de um novo vírus”, diz em resposta ao PÚBLICO. O especialista português que está actualmente a colaborar com a OMS sublinha que “usando métodos de reconstrução genealógica, podemos reconstruir a historia evolutiva da epidemia mesmo sem o genoma viral dos casos iniciais”. As técnicas evoluíram e o perfil das mutações genéticas no tempo fornece “informações extraordinárias” sobre a origem e evolução de um vírus, refere. 

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Um motorista de taxi, em Itália REUTERS/Yara Nardi

O investigador português admite que alguns dos pacientes zero em alguns países sejam detectados. Mas o esforço pode não compensar, avisa, adiantando que “há um elevado potencial destas identificações serem erróneas e altamente estigmatizantes”. Por isso, insiste: “O que é realmente importante é entender como o novo vírus se transmite em diferentes populações e faixas etárias. Vai ser crucial identificar casos iniciais em cada país através de sistemas de vigilância robustos e coordenados, e vai ser importante usar ferramentas genéticas e epidemiológicas para investigar rapidamente se os novos casos estão associados a uma importação do vírus de outro lugar (que pode ou não gerar novas infecções) ou a transmissão local no país.”

Num estudo divulgado na revista The Lancet a 15 de Fevereiro, uma equipa de cientistas chineses revelou que de uma amostra de 41 doentes que se encontravam no hospital a 2 de Janeiro confirmou-se que 27 (66%) tiveram exposição directa ao mercado de Wuhan. “A data de início dos sintomas do primeiro paciente identificado foi a 1 de Dezembro de 2019”, escrevem, adiantando que “não foi encontrado vínculo epidemiológico entre o primeiro paciente e os casos posteriores”. O artigo sobre o perfil clínico dos doentes refere ainda que “o primeiro caso fatal, que teve exposição contínua ao mercado, foi internado no hospital devido a um historial de sete dias de febre, tosse e dispneia [dificuldades respiratórias]”. “Cinco dias após o início da doença, a sua esposa, de 53 anos, sem historial de exposição ao mercado, também apresentou pneumonia e foi internada na ala de isolamento.”

Apesar destes dados, a data dos primeiros casos ainda é outra questão em aberto. Desde os primeiros dias que paira no ar a dúvida sobre a rapidez da identificação deste novo problema de saúde pública e da sua notificação às autoridades de saúde. Mas, para já, os factos que são conhecidos marcam no calendário os primeiros dias de Dezembro de 2019 como o início do surto. Foi nessa altura que as autoridades de saúde na China lançaram o alerta para a existência de um surto de pneumonia viral atípica.

Não foi preciso esperar muito para a confirmação de que se tratava de um novo coronavírus a causar problemas de saúde nos humanos desde a SARS (entre 2002 e 2004) e o MERS (em 2012). São, no entanto, uma espécie de “primos” na mesma família e que terão em comum, por exemplo, o facto de surgirem a partir de reservatórios animais e de causarem (nas pessoas) sintomas de doenças respiratórias.

Mas, tal como lembrou esta segunda-feira a directora-geral da Saúde portuguesa, Graça Freitas, este novo coronavírus possui algumas diferenças de comportamento em relação aos seus “primos”. Parece ser, por um lado, mais contagioso afectando mais pessoas mas, ao mesmo tempo, menos fatal, se compararmos a taxa de mortalidade global de cerca de 2% que tem sido estimada para a doença Covid-19 com a que ficou definida para a SARS e MERS, com 9,5% e 34,5%, respectivamente.

 E o paciente zero da SARS e do MERS foi alguma vez identificado? “Não, tal como o da gripe H1N1 influenza pandémica ou do vírus do ébola não foram inequivocamente encontrados”, esclarece Nuno Faria. O animal que esteve na origem da SARS também terá sido o morcego e, no caso da MERS, foram os camelos.

Outras dúvidas

Sobre a evolução desta nova epidemia também não existe nada além de cenários e hipóteses. O chefe da equipa de médicos especialistas da Comissão Nacional de Saúde da China, o pneumologista Zhong Nanshan, afirmou recentemente que as autoridades chinesas esperam ter o surto do novo coronavírus sob controlo até ao final de Abril.

No final da semana passada, durante uma conferência de imprensa, em Cantão, a capital da província de Guangdong, o médico afirmou que “embora tenha havido um grande surto em Wuhan, a doença não se espalhou de forma maciça em outras cidades”. Zhong sublinhou ainda que o número de casos na China começou a diminuir após 15 de Fevereiro.

A OMS declarou o surto da Covid-19 como uma emergência de saúde pública de âmbito internacional a 30 de Janeiro e recentemente alertou para o risco de uma eventual pandemia, após um aumento repentino de casos em Itália, Coreia do Sul e Irão nos últimos dias. Os dois casos confirmados esta segunda-feira em Portugal têm ligações mais ou menos óbvias a zonas onde o vírus já tinha feito vítimas, mais especificamente ao Norte de Itália e Valência, em Espanha. “Numa segunda fase da epidemia, espera-se que a maioria dos casos detectados seja com transmissão local. Essa transição ditará uma mudança drástica na epidemiologia da COVID-19 no país”, comenta Nuno Faria. 

Por definição, o denominado “paciente zero” (também chamado “paciente index") é o primeiro caso de um surto epidémico. A detecção pode demorar meses, anos ou décadas. Ou mesmo nunca acontecer. O termo faz parte do vocabulário mais técnico e ficou conhecido por causa da disseminação do VIH nos EUA. Curiosamente, esta designação começou com um mal-entendido. O número 0 foi confundido com a letra O usada, neste caso, para assinalar que o doente que tinha sido identificado não era da Califórnia (Out(side)-of-California).

Conhecer o paciente zero desta epidemia não dará todas as respostas sobre este novo vírus, longe disso. Mas é, seguramente, um dado importante para perceber o que está para trás e prevenir o que pode acontecer no futuro. Mesmo com todos os avanços científicos, sobretudo na área da genética, é mais difícil ter um mapa de uma viagem se não soubermos precisamente como e quando começou. No entanto, à medida que vírus ganha terreno, saltando fronteiras e conquistando vítimas em diferentes países, a tarefa de encontrar a ponta deste novelo cada vez mais denso torna-se mais complicada.

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