Os dados “macro” da DGS continuam distantes dos dados “micro” dos autarcas

Autarcas reiteram que Direcção-Geral da Saúde omite casos de covid-19 e dão exemplos. Graça Freitas reconhece que “dados possam não ser iguais, dependendo de como é feita a observação”.

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Cerca sanitária em Ovar Adriano Miranda ,Adriano Miranda
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Ovar em estado de calamidade ADRIANO MIRANDA

Há uma guerra de números entre os autarcas e a Direcção-Geral daSaúde (DGS) sobre os casos de covid-19. Os primeiros querem a fotografia o mais exacta possível – ao minuto, se for caso disso para melhor gerirem a resposta a dar aos seus munícipes. À segunda importa a tendência geral, a evolução da pandemia a DGS faz mesmo a distinção entre o que designa por dados macro e micro. Resultado: os presidentes de câmara insistem dizer que há casos de doentes infectados nas suas zonas que não são reportados pela DGS ou são-no tardiamente. E a diferença chega a ascender a centenas de casos por dia.

Alguns autarcas têm verdadeiras máquinas de informação montadas nos seus concelhos, que compilam informações provenientes de várias origens (ao contrário da DGS, que só recebe os dados introduzidos na plataforma do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica ou Sinave). No caso de Ovar, onde foi decretado o estado de calamidade em meados de Março, há um Gabinete de Crise ao qual chegam dados “veiculados pela célula da Saúde Pública que integra o próprio gabinete: Autoridade de Saúde Local e Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) do Baixo Vouga”, explica ao PÚBLICO um responsável daquele gabinete.

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“Os dados divulgados são efectivamente os do próprio dia e permitem monitorização de todos os casos sobretudo das pessoas infectadas. Só assim se consegue, de imediato, referenciar, para realização de testes ou isolamentos profilácticos, e para apoio social, de agregados familiares”, acrescenta.

Em muitas situações, esta fotografia não coincide com a das autoridades nacionais de saúde e, se alguns autarcas consideram que isso acontece por “falha nas actualizações”, outros acreditam que “há números martelados”.

“Não sabemos como circula a informação entre ACES e DGS, nem o ACES justifica esta discrepância. Julgamos haver falha nas respectivas actualizações”, diz o membro do Gabinete de Crise de Ovar.

Diferença notória

Sem querer tirar conclusões, o presidente da câmara local, Salvador Malheiro, sublinha que a diferença de números é notória. “Os números nunca bateram certo”, assegura. “Estou todos os dias no terreno, conheço as pessoas e verifico que os números das Direcção-Geral de Saúde são bastante diferentes daqueles de que tenho conhecimento”, declara ao PÚBLICO.

No dia 10 de Abril, pelas 22h56, o presidente da Câmara de Ovar, escreveu na sua conta no Facebook: “546 foi o número fornecido pelo ACES [Agrupamento de Centros de Saúde], há minutos, relativo aos infectados confirmados actualmente no município de Ovar. Vamos ver que número apresenta a DGS amanhã… hoje apresentaram só 379”. Na troca de mensagens com o PÚBLICO, atirou com mais um exemplo. “Hoje [domingo, 12], ao meio-dia, tínhamos 553 infectados; a Direcção-Geral de Saúde disse que havia 409”.

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Outros autarcas apresentam os seus exemplos. O presidente da Câmara de Vizela, Vítor Hugo Salgado, avançou com três situações, correspondentes aos dias 2,3 e 9 de Abril. “No dia 2, o concelho tinha 21 pessoas infectadas, de acordo com o ACES do Alto Ave, a DGS disse que havia 11 casos; no dia seguinte, mantiveram-se os 21, tendo a DGS referenciado mais um caso que no dia anterior; no dia 9 de Abril o número de infectados subiu para 35 e a DGS indicou 20”.

No concelho de Vale de Cambra, o mesmo cenário. Nos dias 4,6 e 9 de Abril havia no concelho, respectivamente, 36, 82 e 100 casos de pessoas infectadas, segundo o presidente da câmara, José Pinheiro da Silva. Os números divulgados pela DGS foram apenas 31, 36 e 48, para estes mesmos dias.

Fernando Queiroga, presidente da Câmara de Boticas, não se cansa de frisar que os números que os ACES fornecem sobre a infecção são “verdadeiros, objectivos e fidedignos”. Já relativamente aos dados nacionais tem dúvidas: “A Direcção-Geral de Saúde está a martelar os números porque não está a inserir todos os dados”, declarou ao PÚBLICO o autarca.

As explicações da DGS

O PÚBLICO questionou a DGS sobre estas discrepâncias concretas apresentadas pelos autarcas, mas a resposta acabou por chegar através da conferência de imprensa diária. Questionada, mais uma vez, sobre o assunto, a directora-geral, Graça Freitas, deu uma longa explicação sobre a diferença entre os dados que apelidou de “micro”, e que têm sido usados pelos autarcas, e os “macro​”, das autoridades nacionais de saúde.

“É normal que a nível micro a capacidade de ter informação mais específica e mais apurada seja maior”, assumiu, reconhecendo que a informação da DGS é “mais macro, menos precisa”.

A dirigente explicou depois que vai passar a constar do boletim diário uma nota metodológica “para que se perceba que em determinada altura os dados possam não ser iguais, dependendo de como é feita a observação”. Actualmente já há outras notas explicativas a acompanhar os números. No dia 14, uma dizia: A informação apresentada refere ao total de notificações clínicas no sistema Sinave, correspondente a 81% dos casos confirmados”. Isto significa, por exemplo, que num total de 17 mil casos, há 3400 que não aparecem distribuídos por concelho). Outra nota explicava que os “dados por concelho de ocorrênciasãoapresentados por ordem alfabética. E numa terceira, lia-se: Quando os casos confirmados são inferiores a três, por motivos de confidencialidade, os dados não são apresentados”.

Na sua explicação, Graça Feitas deu o exemplo de várias situações que podem contribuir para a discrepância de dados (relacionadas com a morada do paciente no Registo Nacional de Utentes do SNS e que pode ser diferente do local da ocorrência do caso) e clarificou que, para efeitos de boletim diário, as fontes de informação da DGS são as declarações médicas inscritas na plataforma Sinave ou os reportes laboratoriais inscritos na base de dados Sinavelab. Graça Freitas apelou aos médicos para que façam os seus reportes o mais “precocemente possível” de modo que as informações sejam rigorosas.

“Dependemos da quantidade de dados, mas também do seu dinamismo”, disse ainda Graça Freitas, que se mostrou compreensiva quanto ao facto de os autarcas precisarem de informações mais específicas (micro) para efeitos de resposta às populações.

Não partilhar dados

As queixas sobre as discrepâncias dos números têm sido uma constante desde o início da pandemia, mas engrossaram depois de a ministra da Saúde ter dado instruções às autoridades locais de saúde que foram entendidas como uma forma de limitar o acesso dos autarcas aos dados recolhidos.

Marta Temido apressou-se a explicar que “não há qualquer proibição de partilha de informação”, mas sim um apelo claro a todas as entidades que integram o Ministério da Saúde, em especial às autoridades locais e regionais de saúde, que se concentrem no envio de informação atempada e consistente para o nível nacional” porque “boletins parcelares podem ser causadores de análises fragmentadas”, mas alguns autarcas mantiveram a desconfiança.

Falando também na qualidade de presidente da Comissão Distrital de Protecção Civil do Alto Tâmega, Fernando Queiroga sublinha que os autarcas são aqueles que estão na “primeira linha” de resposta e que devem ter acesso a toda a informação. Para já, Queiroga pode respirar de alívio o seu concelho – Boticas – tem zero pessoas infectadas com covid-19 e zero óbitos.

Para o presidente da Câmara de Vale de Cambra, também não há dúvidas de que os autarcas precisam de ter acesso às informações. “Quem está no terreno e tem que planear acções tem de ter acesso à informação, porque se acontecer qualquer problema não é o SNS que vai resolver o problema”, defende José Pinheiro da Silva. “Nunca quis saber o nome das pessoas que estão infectadas mas, quando se trata de casos sensíveis, os números são importantes”, acrescenta.

Esperando que a ministra dê um passo atrás, o presidente do município de Vale de Cambra deixa um conselho a Marta Temido: “A ministra da Saúde tem de olhar para os autarcas como parceiros nesta estratégia de combate. Se assim não for não estamos aqui a fazer nada”. com Sónia Sapage

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