Trump, a OMS e a “navalha de Occam”
Que faz correr Trump ? As eleições de Novembro, em que o coronavírus lhe pode estragar tudo. Pensando bem, esta questão tem muito mais a ver com a saúde da democracia americana do que com política internacional.
Que pretende Donald Trump? A suspensão do financiamento à Organização Mundial de Saúde (OMS), em plena pandemia da covid-19, incita à mais primária das análises: o Presidente precisa de desviar as atenções das suas responsabilidades sobre a expansão do coronavírus nos Estados Unidos e designar “bodes expiatórios”. Na mesma terça-feira do anúncio da decisão, os EUA registaram um dramático recorde de mais de 2200 mortos pelo coronavírus num único dia, segundo a contagem da Universidade Johns Hopkins, o que eleva o balanço total de 25.757 mortos.
A Administração Trump está de baixo de fogo pela falta de preparação e pelo desnorte perante a pandemia. Respondeu com contra-ofensiva e geral: acusa os media, acusa os congressistas democratas, acusa a Administração Obama, acusa os governadores dos estados e, enfim, fulmina a OMS.
Os democratas e Obama seriam os responsáveis pelo estado caótico do sistema hospitalar. Os governadores, além de reivindicar equipamentos sanitários e testes, afirmam também as suas prerrogativas em relação ao confinamento e à completa reabertura das empresas. Trump não só lhe devolve as responsabilidades no alastramento dos contágios como se arroga ter, enquanto Presidente, “todos os poderes” nesta matéria. É a ameaça de uma crise constitucional que provocou inquietação na América: a usurpação das competências dos governadores.
Este é o contexto político da decisão, que até pode vir a não se consumar: na mesma conferência de imprensa, disse Trump sobre o futuro: “Veremos o que fazer depois de termos averiguado a fundo.” É uma táctica nele habitual.
É evidente que a China, depois de ter encoberto o surto epidémico em Wuhan e acelerado a pandemia, procura, e com algum êxito, aparecer aos olhos da comunidade internacional como o grande ganhador da crise, o país que primeiro venceu o vírus e o que está na frente da cooperação mundial para debelar a doença. A errática política de Trump, obcecado pelas eleições, fez com que os Estados Unidos recusassem a liderança da da cooperação mundial, como fizeram em anteriores pandemias. Abriu uma avenida para a diplomacia e para a propaganda chinesas.
É também evidente que tanto a OMS como outras agências da ONU são um campo de disputa entre as potências. A eleição do director-geral, o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, apoiado pelos países africanos e pela China, foi vista como um desaire dos ocidentais. É também evidente que Tedros protegeu Pequim no início da epidemia e depois felicitou XI Jinping, em termos algo “exagerados”.
Mas também não devemos esquecer os entusiasmos e as fúrias de Trump. No dia 24 de Janeiro, emitiu um tweet : “A China trabalhou arduamente para conter o coronavírus. Os Estados Unidos apreciam grandemente os seus esforços e a sua transparência. Tudo correrá bem. (…) Em nome do povo americano, agradeço ao Presidente Xi.”
Mudou de agulha quando a epidemia rebentou nos EUA. A partir de 21 de Março, Trump e o secretário de Estado, Mike Pompeo, passaram a denunciar a culpa da China : o “vírus chinês” ou o “vírus do Wuhan”.
Titulou o bitânico The Guardian : “Trump volta-se contra a OMS para encobrir os seus imensos falhanços na crise da Covid-19”. O New York Times assumiu igual interpretação : “Criticado pela resposta à pandemia, Trump tenta desviar a culpa para a OMS.” Claro que ambos os títulos fazem parte da “lista negra” do Presidente.
É uma interpretação simplista? Há um velho princípio conhecido por “a navalha de Occam": tal como a natureza tende a optar pelo caminho mais simples, entre as muitas explicações de um fenómeno, devemos escolher a mais simples. Em relação a Trump, parece sensato seguir Guilherme de Occam (1285-1347).
Que faz correr Trump ? As eleições de Novembro, em que o coronavírus lhe pode estragar tudo. Pensando bem, esta questão tem muito mais a ver com a saúde da democracia americana do que com política internacional.
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