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O Presidente da República, o enfermeiro Luís e o maior bolo-rei do mundo

O Luís cuidou de Boris Johnson como teria cuidado de um idoso abandonado num lar, de uma prostituta encontrada na rua ou de um indigente.

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Boris Johnson dirige-se ao povo britânico depois de ter tido alta hospitalar. Nesta intervenção agradece aos enfermeiros Jenny (Nova Zelândia) e Luís (Portugal) LUSA/PIPPA FOWLES/n10 DOWNING STREET

Nunca pensei escrever estas palavras, mas a verdade é que os acontecimentos dos últimos dias me forçaram a ceder à evidência. Presumo que, tal como milhares de portugueses, neguei até onde me foi possível. Ao longo dos últimos meses fui disfarçando o incómodo, fui fingindo que não via, fui ignorando a verborreia… Só não assobiei para o lado porque nunca aprendi a fazê-lo. Acontece que agora, depois do telefonema do Presidente da República ao meu colega Luís, não posso continuar a fugir à mais clara das verdades: a principal figura do Estado português sofre da síndrome do maior bolo-rei do mundo.

Numa escala numérica de provincianismo, telefonar ao enfermeiro português que cuidou de Boris Johnson é, pelo menos, um sólido e brilhante nove. A sério, qual é a diferença entre este telefonema do Presidente e o português que infla o peito para dizer que “eles até podem ter um ordenado mínimo três vezes superior ao nosso, mas nós é que organizámos a feijoada na ponte”? Pois… Muita vergonha alheia, não é?

E sabem o que é ainda mais ridículo nisto tudo? É que aposto a minha mão direita em como o meu colega dispensava bem este telefonema. Porque o que o Presidente da República parece não compreender é que o Luís se limitou a fazer o mesmo que milhares de enfermeiros, médicos, assistentes operacionais e técnicos de diagnóstico e terapêutica fazem todos os dias: cuidar, com profissionalismo e competência, de todos aqueles que necessitam. O Luís cuidou de Boris Johnson como teria cuidado de um idoso abandonado num lar, de uma prostituta encontrada na rua ou de um indigente. Porque para o Luís, e para todos os Luíses que se dedicam a cuidar dos outros, todas as vidas valem o mesmo. Não há doentes de primeira ou doentes de segunda.

O Luís passou o turno à cabeceira de Boris Johnson não porque era o primeiro-ministro inglês deitado numa cama, mas porque o Luís é, tal como eu e milhares de outros colegas, enfermeiro numa unidade de cuidados intensivos. E isso é o que nós fazemos. Estamos ao lado dos doentes, numa monitorização apertada, 24 horas por dia. Desde sempre. Desde muito antes da pandemia. E à cabeceira dos doentes continuaremos quando tudo isto acabar. Era importante que algum dos assessores de Belém informasse o nosso Presidente deste facto. Se calhar, assim, evitavam-se estas demonstrações de provincianismo bacoco.

E, telefonemas à parte, o Luís continua longe de casa, emigrado. É mais um dos 18 mil enfermeiros que deixaram Portugal nos últimos anos. É mais um dos que decidiu virar as costas às propostas milionárias dos 6,42 euros por hora que, no final do mês, depois de 140 horas de trabalho, rendem um brilhante salário de 899 euros. Talvez fosse com isto que o nosso Presidente da República se devesse mostrar preocupado, talvez esta fosse a melhor forma de elogiar o trabalho do Luís. Aposto que ele ficava bem mais agradecido do que com o telefonema que só mostra que, às vezes, somos mesmo um povo pequenino. Mesmo que tenhamos conseguido fazer o maior bolo-rei do mundo. Têm dúvidas? É consultar o Guinness.

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