Fechados em casa, livres numa ilha. Animal Crossing: New Horizons é o jogo desta pandemia?
New Horizons, o novo jogo da série Animal Crossing, dá aos utilizadores uma ilha, que é governada a seu gosto. Lá, são o que (e quem) quiserem, na companhia de animais. A liberdade digital, a calma e a narrativa parecem ser os maiores trunfos do videojogo, lançado em tempos de isolamento social e restrições.
Todos os dias, Wandson Lisboa viaja do Porto para o Maranhão, no Brasil. A bandeira do estado brasileiro está mudada e um copo de fino é o seu símbolo maior. O território descolou-se das fronteiras terrestres, sendo agora uma ilha habitada por animais que falam. Este artigo não chegou do futuro pós-pandemia (e ninguém está a alucinar com figuras antropomórficas). Antes de qualquer julgamento: não, Wandson não sai de casa em viagens supersónicas nem usurpou a sua terra natal. Os animais falam, sim, mas dentro do ecrã da Switch, a consola da Nintendo.
Tudo isto acontece em New Horizons, o quinto capítulo da série principal de videojogos Animal Crossing, que chegou à Switch a 20 de Março último. Quase 19 anos após a estreia (para a “velhinha” Nintendo 64), o videojogo de simulação manteve fãs, que aguardaram pacientemente pelo novo New Horizons, mas também atraiu muitos curiosos, como Wandson. Agora, a primeira coisa que faz ao acordar é ver o que mudou na sua ilha desde a última vez que lá esteve, através da ajuda da cadela Isabelle, uma espécie de assistente do jogador, e ver o que fazer para ir pagando o empréstimo concedido pelo magnata Tom Nook, um cão-guaxinim japonês. Ou colher frutos. Ou decorar a ilha a seu bel-prazer. “Desde que comprei [o jogo] já passei 75 horas em Animal Crossing”, conta, admitindo que, desde então, está “super colado”. “Não jogo mais nada. Vejo o que ela [Isabelle] tem para dizer e é isso. Trabalho e vou jogando.”
Há gente “super colada” em várias partes do globo. Só nos primeiros três dias após o lançamento, venderam-se quase dois milhões de edições físicas no Japão; no Reino Unido, teve o melhor registo singular de vendas para a consola. Até o número de downloads de Pocket Camp, jogo da série para o telemóvel, aumentou de 520 mil em Fevereiro para 1,3 milhões em Março (dados da Sensor Tower, que analisa o crescimento de aplicações). “É, neste momento, o jogo mais falado no mundo, destronando nomes como Fate/ Grand Order — que segurou esse título por quase dois anos — e Fortnite”, disse Rishi Chadha, responsável maior pelas parcerias de gaming no Twitter, ao The New York Times.
“Uma maneira simples de viver a vida”
Em altura de distanciamento social, a construção de uma outra vida “de uma forma muito querida” através de um ecrã parece ser um dos maiores motivos para o sucesso de New Horizons. Wandson diz que esta é “uma possibilidade de um escape do que estamos a sentir e a vivenciar nos dias de hoje.” E é ainda possível dar presentes a amigos que também joguem (através de uma subscrição premium, que permite a partilha do território com até oito jogadores). A síntese de Gonçalo Terroso, estudante de 21 anos, é semelhante: “Jogas como tu próprio e tens a liberdade para fazer o que quiseres. É uma maneira simples de viver a vida.” O vimaranense não chegou agora a este mundo — jogou todos os títulos “menos o primeiro”. Por essa razão, aponta melhorias, como a maior liberdade “para decorar a ilha”, algo que lhe tem ocupado a maior parte do tempo na sua ilha (também uma novidade em New Horizons), deixando-o “bué colado” à Switch.
Os dados relativos à adesão do jogo em Portugal não foram ainda divulgados, mas os próprios jogadores notam um número crescente de adeptos por cá. “Sei que o hype é maior no estrangeiro, mas a verdade é que dantes não conhecia quase ninguém aqui que jogasse. Agora, conheço para aí 15 pessoas”, aponta Gonçalo. O crescimento pode ser comprovado (até certo ponto) pelo grupo Animais Crosseiros, dedicado à comunidade portuguesa e gerido por Xana Lopes e Pedro Fernandes. Segundo os dados do Facebook, no último mês houve um crescimento de mais de 700 membros. “Eu passo a vida a aceitar membros. Por dia, na boa, aceito 50 a 70 membros, quando durante muitos anos não passávamos dos 200”, conta Xana, 23 anos, assistente de vendas a viver na Suíça. Nos próximos dias, é “muito provável” que o número de “animais crosseiros” ultrapasse os 1000.
Para Pedro, “é muito curiosa” o equilíbrio entre géneros na comunidade. “E é-o desde sempre”, garante o engenheiro informático de 29 anos. “Mesmo naqueles anos em que tínhamos poucas pessoas, entravam muitas raparigas do nada”, acrescenta. É que Pedro, inserido em muitos outros grupos portugueses dedicados a videojogos, nota que esse equilíbrio não se vê noutros títulos. Porque, no fundo, a génese de Animal Crossing une todos: não há corridas nem tiros, o jogo desenrola-se pacificamente e espelha alguma da rotina. Um pouco ao estilo de The Sims, mas sem progressões na carreira, traições e motherload.
Mundos “onde tudo se encaixa”
O mesmo diz Ivan Barroso: “Animal Crossing é de fácil acesso, é muito intuitivo, não tem violência, há muito conteúdo para ser desbloqueado. Engloba o jogador. Há conteúdo novo durante muito tempo e não é um jogo muito intrusivo.” O historiador de videojogos e professor na Universidade Lusófona de Lisboa, ETIC (Escola de Tecnologias Inovação e Criação) e Instituto Politécnico de Leiria aponta o “escapismo da realidade” como a principal razão para a atractividade do jogo.
A isso junta-se a “filosofia da Nintendo”, cuja “raiz” não são os videojogos, mas sim a produção de brinquedos — “e a empresa adoptou a noção do brinquedo para o virtual”. Porque, no fundo, “brincamos sempre”. E há a ideia, no Japão, “de fazer um produto para agradar ao maior número de pessoas e credos”. “Constroem um mundo neutro onde tudo se encaixa.” Para isso contribuem duas coisas. Primeiro, “a sinergia entre a informática e os artistas manga e anime” no desenvolvimento de videojogos no Japão, ao contrário do que acontece na Europa e América, “em que nascem dos circuitos informáticos”.
Depois, o chamado “mukokuseki”. “Significa que as personagens e o mundo são muito ambíguos. Parece ocidental, mas também pode ser oriental. E isso nota-se nas viagens das personagens que, sem atravessar ou mencionarem continentes, parece que passam de civilizações orientais para outras ocidentais. As personagens também, por vezes, assumem essa ambiguidade, até no sexo”, explica. Para Ivan, tal pode evitar polémicas de representatividade (ainda que nem sempre, como no caso de uma publicidade com a tenista Naomi Osaka).
Uma volta ao Sol
No que diz respeito à narrativa de New Horizons, todos os entrevistados lhe gabam a complexidade, que contrasta com a simplicidade gráfica. “A inteligência das personagens é muito bem desenvolvida”, aponta Pedro. Xana acrescenta: “Os animais têm carácter, data de aniversário, personalidades diferentes”. “Os diálogos que temos com outros habitantes da ilha são muito bem feitos. São muitas frases todos os dias e há sempre um diálogo diferente”, refere Wandson, que gostaria “muito de saber como terá sido todo o desenvolvimento do jogo”.
New Horizons acompanha o horário real. Por isso, é possível que o jogador se depare com algumas personagens só durante a noite ou só quando o Sol brilha num céu azulado — e nem sempre é assim. As estações também mudam. Agora, diz Xana, o cenário “está muito giro”. “As árvores estão todas floridas e ajuda imenso na questão de plantares flores”, diz. Gonçalo indica uma estimativa de “tempo de vida” do jogo: “Como as coisas vão mudando de acordo com as estações e porque há novidades em épocas mais festivas, diria que o jogo tem, pelo menos, um ano de tempo de vida. Mas a Nintendo vai adicionando coisas.”
Todos têm objectivos diferentes no jogo. E todos são válidos. Por esta altura, Wandson já terá colhido fruta suficiente e partido toda a madeira para montar o palco para o concerto de Totakeke Slider, “o cachorrinho” cantor do jogo de guitarra ao peito. Entretanto, na ilha onde o copo de fino é símbolo maior, o designer diz “matar saudades” da sua terra natal através da Switch. Da ilha para o estado brasileiro, fica a mensagem: “Beijinhos, Maranhão.”