Moraes Moreira, um dos fundadores dos Novos Baianos, morre aos 72 anos

Moraes Moreira, cantor e compositor, um dos fundadores do grupo Novos Baianos, morreu esta segunda-feira de madrugada na sua casa, no Rio de Janeiro. Tinha 72 anos e, segundo os seus assessores, terá morrido de um enfarte agudo do miocárdio.

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Moraes Moreira Ricardo Borges/Divulgação

O cantor e compositor baiano Moraes Moreira, membro fundador do grupo Novos Baianos, que na década de 1970 contribuiu para transformar a música popular brasileira, morreu na madrugada desta segunda-feira, aos 72 anos. Um enfarte agudo do miocárdio foi-lhe fatal, durante o sono.

Nascido Antônio Carlos Moraes Pires, em 1947, na cidade de Ituaçu, na Bahia, foi na adolescência que aprendeu a tocar violão. Mudou-se ainda jovem para Salvador, onde conheceu Tom Zé e os músicos Paulinho Boca de Cantor, Luiz Galvão, Baby Consuelo e Pepeu Gomes, com os quais formaria em 1969 o grupo Novos Baianos, que nesse mesmo ano se estreou ao vivo com o espectáculo O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal, no Teatro Vila Velha, em Salvador da Bahia. É Ferro na Boneca (1970) assinalou a sua estreia em disco, mas foi com Acabou Chorare (1972) que o grupo decisivamente se afirmou com um dos mais criativos da cena musical à época. A Rolling Stone Brasil considerou-o, num balanço feito em 2007, um dos 100 melhores álbuns de sempre da música brasileira.

Compositor, junto com Luiz Galvão, de todos os temas do grupo, Moraes Moreira resolveu deixá-lo em 1975 para iniciar uma carreira a solo, durante a qual viria a gravar três dezenas de álbuns, de Moraes Moreira (1975) até ao mais recente Ser Tão (Discobertas) (2018).

Pioneiro no trio eléctrico

Destacou-se, no início da carreira a solo, como o primeiro cantor de trio eléctrico, no Trio de Dodô e Osmar, lançando músicas de carnaval como Vassourinha elétrica, Pombo correio e Bloco do prazer. Nos anos 1980, afastou-se um pouco do carnaval baiano (a pretexto da sua usurpação pela indústria turística), mas regressaria a ele mais tarde, em 1997, com o disco 50 Carnavais, que celebrava também os seus 50 anos de vida.

Dois anos depois, homenageou os 500 anos do Descobrimento do Brasil com o disco 500 Sambas (1999). Teve mais, dedicados ao Brasil, em particular a trilogia Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira (1979), O Brasil Tem Concerto (1994) e Meu Nome é Brasil (2003). No mesmo ano em que lançou o segundo destes discos, 1994, gravou também um Acústico para a MTV (editado depois em DVD e DVD), onde incluiu, a par de temas marcantes na sua carreira a solo, dois da fase trio eléctrico (Vassourinha elétrica e Pombo correio), e quatro da época de ouro dos Novos Baianos, como Acabou chorare, Preta pretinha, Mistério do planeta e Brasil pandeiro.

Em 2008, lançou o livro A história dos Novos Baianos e outros versos no qual conta a história do grupo em literatura de cordel, fala das músicas de sua carreira a solo. O livro deu origem a uma digressão pelo Brasil.

Trovante, uma história portuguesa

Moraes Moreira também gravou um disco em Portugal, um single. Foi em 1993, com o Trovante, e viajou até Lisboa por via da EMI, companhia que representava ambos. No livro Sobreviventes - O Rock em Portugal na Era Do Vinil, de Pedro de Freitas Branco (ed. Marcador, 2019), inclui-se uma citação de Moraes Moreira a propósito dessa gravação: “O Trovante perguntou por um artista brasileiro da gravadora e na Odeon [um selo da EMI] indicaram o meu nome. Mostraram-me os discos do grupo, fiquei animado, e fui.” João Gil recorda agora, ao PÚBLICO, esses momentos: “Foi uma experiência de estúdio muito divertida, porque ele era muito popular, uma estrela de um certo tipo de música, o baião. Nós respeitámos bastante as ideias dele, foi ele que dirigiu a parte vocal. Mas os arranjos foram nossos.”

Moraes Moreira trazia uma música inédita chamada Sonhei que estava em Portugal, que até pelo título não se enquadrava muito numa gravação de um grupo português. “Para nós não fazia muito sentido”, diz João Gil. A reacção de Moraes Moreira foi, ainda segundo a sua citação no mencionado livro, de desapontamento: “Fiquei bem triste, frustrado, mas depois mostrei Baile no meu coração, que eu fiz com o poeta Paulo Leminski, e eles adoraram. O Trovante e eu nos demos bem pra caramba. Fiquei uns dias em Portugal.”

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As capas dos singles: a edição brasileira (a vermelho) e a portuguesa (a azul)

Baile no meu coração (baião de dois) acabou por ser o lado A do single, que foi editado em Portugal e no Brasil no mesmo ano, 1983, com capas distintas e um lado B diferente. A edição brasileira (de capa vermelha) tinha como segunda canção Ribeirinho, um poema de Fernando Pessoa musicado por António José Martins e João Gil; e a portuguesa (de capa azul, onde o nome Moraes surgia grafado com “i”, Morais) tinha no lado B a canção O Namoro, um poema de Viriato da Cruz musicado por Fausto Bordalo Dias, gravado ao vivo pelo Trovante na Aula Magna, em Lisboa, em Maio desse ano.

A canção Baile no meu coração já tinha sido gravada por Moraes Moreira em 1982, no seu álbum Coisa Acesa. Quanto a Sonhei que estava em Portugal, não sendo gravada em Lisboa, o cantor acabou por incluí-la no álbum seguinte, Pintando O Oito (1983). Ao contrário do que circula nalgumas menções na internet, Baile no meu coração não integrou o LP do Trovante Cais das Colinas, lançado também em 1983. Mas acabou por ser incluída mais tarde, nas reedições desse álbum, como décima primeira faixa.

O balanço dessa fugaz parceria, ainda segundo João Gil, foi desigual: “Resultou muito bem em Portugal, fomos muito úteis para ele se tornar popular aqui, mas o mesmo já não se passou lá. Hoje já seria diferente, claro. Mas na altura havia uma porta de entrada para cá e não o contrário.” E assim Moraes Moreira ficou na nossa memória colectiva.

Fundamental referência

A notícia da sua morte foi, desde logo, comentada nas redes sociais por muitos brasileiros e em particular pelos músicos. No Instagram, Gilberto Gil, citado pelo Globo, escreveu que Moraes Moreira “deixa saudade e uma grande obra”: “Menino do sertão da Bahia, ouviu encantado a música do mundo e fez dela seu universo expressivo.” A também baiana Daniela Mercury falou dele como “um gênio da música brasileira”: “Uma fundamental referência para todos nós. Ele sempre foi o nosso poeta do carnaval. O primeiro a colocar voz em um trio elétrico. Dono de um repertório carnavalesco único.”

Djavan, por sua vez, referiu-se a Moraes Moreira como “um artista incrível, dono de um talento que nos deu tantas alegrias”. A cantora Maria Rita, que foi casada com Davi Moraes (filho do falecido cantor), contou como a sua filha em bebé tinha medo de Moraes Moreira (“Ele era enorme. Talento, inteligência, generosidade, volume, voz, cabelo”) mas que o avô se tornou um dos seus melhores amigos.

Não só os músicos. Também clubes desportivos lamentaram a morte do cantor. A sua música O caminhão da alegria serviu de alcunha, na década de 1980, ao Sport Club do Recife e é sempre tocada antes dos jogos do clube pernambucano na Ilha do Retiro.

A covid-19 nos últimos versos

Há três semanas, inspirado no isolamento social forçado pela pandemia da Covid-19, Moraes Moreira tinha publicado nas suas redes sociais um texto em estilo de cordel intitulado Quarentena. Começava assim: “Eu temo o coronavírus/ E zelo por minha vida/ Mas tenho medo de tiros/ Também de bala perdida,/ A nossa fé é vacina/ O professor que me ensina/ Será minha própria lida.” E os últimos versos eram estes: “O que vale é o ser humano/ E sua dignidade/ Vivemos num mundo insano/ Queremos mais liberdade,/ Pra que tudo isso mude/ Certeza, ninguém se ilude/ Não tem tempo, nem idade.” Palavras de um músico que teve sempre o Brasil no pensamento.

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