Verdade e ponderação
Nesta altura, exige-se a todos, dos cidadãos aos eleitos, um acrescido cuidado na forma como lidamos com a informação.
Nada é fácil neste tempo interrompido da normalidade. Fechados em casa, somos inundados pelo fluxo de informação monotemática sobre o coronavírus. Nos media, nas redes sociais, nas nossas conversas, não há ponto da nossa vida que esteja intocável. Muitas vezes certamente nos sentimos perdidos para distinguir entre verdade e mentira, entre informação relevante e acessória. Para isso é crucial perceber o peso que a verdade tem para se transformar na Verdade.
Veja-se a necessidade hoje de perceber o significado da descoberta de que 91 doentes dados como curados na Coreia do Sul voltaram a revelar-se infectados. A possibilidade de se tratar de um padrão generalizado é um susto para qualquer política de saúde pública, um golpe para a nossa esperança de sairmos da epidemia. Os 91 doentes podem ser verdade, mas, ouvidos os especialistas, eles apontam que estes casos são uma excepção, uma anomalia à procura de explicação, num universo de quase 400.000 pessoas recuperadas da doença. O contexto é essencial.
Para o Ministério da Saúde a diferença entre os números relatados diariamente pela DGS e aqueles que os autarcas vão sabendo pelas autoridades locais de Saúde podem ser uma coisa acessória, o contexto com que têm de lidar é o nacional. Mas para os autarcas, que actuam num contexto diferente, a Verdade só existe com os números locais. A decisão da ministra da Saúde, Marta Temido, de pedir aos delegados de saúde pública para que “se concentrem” na informação nacional e deixem de reportar localmente suscitou um expectável protesto.
A tensão de “análises parcelares”, como a ministra referiu, seja neste caso, seja na distribuição de testes ou de ventiladores, faz parte do problema, mas a solução não pode ser deixar de prestar informação aos autarcas, a menos que não se conte com eles na luta pela pandemia. Se os serviços fornecem números discrepantes, resolva-se a questão, mas não se perca a necessidade de transparência. Se algum autarca não está a ter boas práticas, corrija-se o autarca, mas não se esqueça que para muitos portugueses eles são a instância de apelo mais próxima.
Nesta altura, exige-se a todos, dos cidadãos aos eleitos, um acrescido cuidado na forma como lidamos com a informação. Ninguém pode esquecer que numa epidemia, mesmo a verdade mais insofismável, sem ponderação, pode desencadear comportamentos contrários ao desejado. É neste contexto que os autarcas também não podem esquecer a confiança que merecem as autoridades nacionais e que não deve ser minada, sendo de todo dispensável a argumentação de “censura” e “lápis azul” evocada pelo autarca de Espinho nesta polémica. A transparência é imperativa, mas também a cabeça fria e a ponderação.