Democracia em tempos de crise: o isolamento como motor de renovação social e política
Temos o dever, como cidadãos e contribuintes, de preparar colectivamente a agenda e debate públicos que terão lugar quando o surto pandémico estiver controlado, com o objectivo de facilitar a retoma económica e também de disseminar a adopção de valores inter-geracionais, como a protecção à saúde e ao ambiente.
Após longos dias de isolamento social, temendo não apenas um possível contágio pelo novo coronavírus, mas também a emergência de recessão económica associada a desemprego em massa, remamos em mar de incertezas, sem data marcada para avistar terra. Como preparar o futuro num contexto sem previsão de retoma, em que muitos tememos a não continuidade da nossa actividade profissional? Felizmente o Estado resgatou a dimensão social que parecia há muito esquecida sob a imposição de imperativos financeiros, quer coordenando a restruturação e injecção de recursos no depauperado Serviço Nacional de Saúde, quer implementando um conjunto de medidas excepcionais de apoio à actividade económica e de protecção aos trabalhadores. Por outro lado, sabemos que o braço protector do Estado não conseguirá chegar a todos e que os instrumentos extraordinários de auxílio às empresas não poderão ser mantidos por muito tempo. Tal como acontece noutros países, os nossos centros de emprego estão já a registar elevados níveis de inscrições, consequência da insolvência de microestruturas empresariais que não têm recurso a teletrabalho e para as quais a paralisação imposta pelas medidas de isolamento é insustentável.
Na busca de pistas para resiliência individual em contexto de grande incerteza, a única prescrição que sabemos ter sido eficaz ao longo da história assenta em organização colectiva, mais concretamente, na participação sustida e alargada de cidadãos em estruturas da sociedade civil. Basta pensar no impacto social das múltiplas iniciativas de solidariedade que foram sendo organizadas ao longo das últimas semanas para entender a missão crítica da sociedade civil na resposta a contextos de grande adversidade. Precisamos de transpor estes exemplos para a capacitação de associações com a missão de dar voz e identificar soluções às preocupações que unem empregadores e trabalhadores no contexto dos grandes desafios gerados pela crise. São inúmeros os estudos internacionais sobre democracia e governança que demonstram o impacto crítico e insubstituível da participação neste tipo de organizações da sociedade civil, não apenas na mitigação de contextos de adversidade socioeconómica mas também como factor que influencia indicadores de saúde pública. [1]
A receita de associativismo face à pandemia parece paradoxal no contexto de isolamento social em que nos encontramos mas é facilmente exequível: as plataformas de comunicação online que permitem realizar videochamadas em grupo, ou participar em tempo diferido por escrito estão ao dispor de uma percentagem significativa da população e tornam possível reconciliar isolamento físico com dinamização social. Note-se que o associativismo vivido online não pode ser de forma alguma confundido com participação em “redes sociais” comerciais. Traduz-se, sim, na vivência de actividades promovidas online por associações cuja missão é analisar problemas e soluções colectivas, com o fim último de pressionar a agenda e implementação de políticas públicas. As redes sociais comerciais oferecem, ao invés, uma ilusão de sociocracia que não se traduz em influência decisória e que frequentemente gera efeitos perversos na resolução de dilemas colectivos. Isto acontece porque a capacidade que cada um de nós como cidadão tem de agregar opiniões fundamentadas e de exercer influência no agendamento e implementação de políticas públicas através da disseminação de conhecimento nas redes sociais comerciais é inversamente proporcional à lotação de desinformação gerada automaticamente nestes meios de comunicação por interesses políticos e económicos com recursos financeiros e/ou tecnológicos.
Há um conjunto de questões políticas em espera para entrar na agenda pública pós-pandémica, i.e. após a união nacional que a crise sanitária exige, e para as quais precisamos de respostas independentes de ciclos eleitorais, preocupações partidárias e interesses económicos. Essas questões estão centradas nos grandes temas que influenciarão o destino da sociedade no século XXI: saúde, trabalho, ambiente, educação e privacidade. Há também um debate urgente a realizar no futuro que esperemos próximo sobre o que queremos para o país, como destino colectivo, como nação integrante do projecto europeu, e como peça num mundo comercial e produtivo cada vez mais interconectado. Voltaremos a questionar o desígnio do Estado e o seu papel no equilíbrio entre forças de mercado e bem-estar social. Qual a razão de ser do Estado? Queremos um Estado centrado na regulação e na prossecução de balizas financeiras determinadas externamente? O que esperamos das instituições públicas nacionais e europeias relativamente à implementação de instrumentos e incentivos ao crescimento económico, à protecção de condições de trabalho, à reposição de indicadores sustentáveis no ambiente e à prestação de serviços de saúde inclusivos? Como assegurar políticas públicas que promovam economias sustentáveis, sistemas de saúde eficazes, e um ecossistema ambiental que preserve as gerações vindouras?
Precisamos de questionar também – e assumir – a nossa responsabilidade, quer empresarial, quer individual nestes temas. Qual a missão, deveres e direitos das empresas na sociedade? Queremos manter um sistema em que os accionistas (shareholders) são privilegiados em relação aos outros intervenientes na cadeia de produção (stakeholders), com o impacto negativo que se observa no consumo, no ambiente, e na qualidade de vida de profissionais e suas famílias? Quais as obrigações das empresas relativamente à adopção de teletrabalho, sempre que possível, como norma protectora do ambiente? Queremos manter a centralização logística de funções laborais, nos muitos casos em que, como as últimas semanas atestam, é possível cumprir objectivos a partir de casa e assim diminuir a pegada ambiental? Mas como será monitorizado o teletrabalho – sendo esta uma das grandes preocupações para os empregadores – e quais serão os direitos dos trabalhadores? E como garantir privacidade em contextos de teletrabalho? Que revisões legislativas deverão ser implementadas para tornar este modelo viável e de que forma serão as novas normas compatíveis com o recém-chegado Regulamento Geral de Protecção de Dados?
No nosso microcosmo individual e familiar, há também um conjunto de questões em espera, e com grande impacto social: queremos manter os padrões anteriores de consumo e de turismo, contribuindo para o somatório de milhões de viagens aéreas, terrestres e marítimas que utilizam recursos fósseis e geram níveis insustentáveis de poluição, intensificando alterações climáticas? Qual o preço que devemos pagar pela nossa pegada ambiental? Como monitorizar essa pegada? A perda de liberdade de deslocação imposta nas últimas semanas propiciou alterações nos níveis de poluição e em condições atmosféricas que suportam as conclusões de vários estudos ambientais. Quais os nossos deveres de cidadania perante a iminência de uma catástrofe natural que será cada vez mais certa se não revertermos padrões arreigados de trabalho logisticamente centralizado, lazer geograficamente disperso e consumo desenfreado? Por outro lado, como assegurar a reconversão das empresas de transporte e outros sectores que dependem de comportamentos ambientalmente insustentáveis, de forma a minimizar o impacto económico e laboral da adopção de novos padrões?
Em todas estas questões, o Estado e as instituições supranacionais terão um papel fundamental de regulação e criação de incentivos. E todas estas questões estarão inexoravelmente associadas a desafios à privacidade, uma vez que a monitorização de comportamentos, quer na área da saúde, quer na execução de funções profissionais, quer no que respeita à pegada ambiental poderá ser feita através da vigilância de dados móveis privados, tal como atestam as estratégias implementadas por diversos países para identificação e contenção de redes de contágio pela covid-19. São dilemas profundos e difíceis de resolver que exigem estruturas de diálogo, com capacidade para dar voz aos segmentos mais vulneráveis da sociedade, lideradas de forma independente e não sujeitas a contingências eleitorais e/ou pressões económicas, com recursos para angariar conhecimento interdisciplinar que fundamente propostas inovadoras de decisão pública e empresarial.
Entre o conjunto de associações que têm realizado trabalho sustido neste âmbito, destaco aquela que melhor conheço, i.e. a Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação (APDSI). [2] Esta associação reúne entre os seus membros um conjunto significativo de profissionais de grandes, pequenas e micro empresas tecnológicas, académicos com especialidades diversas, especialistas com responsabilidade na modernização digital da administração pública, meios de telecomunicação e comunicação social, entidades de saúde e do ambiente, e em diversos sectores empresariais privados. É uma organização aberta a qualquer cidadão, independente de convicções político-partidárias e de interesses económicos, e mantém uma tradição de inclusividade, integrando vozes e perspectivas antagónicas na produção de informação e análise sustentada e dirigida a decisores públicos e empresariais. Inclui vários grupos de trabalhos, cujas actividades são organizadas em modelo que combina presença física e videoconferência (no actual contexto apenas opera nesta última modalidade). Estes são os ingredientes que esperamos numa organização participativa e inclusiva, centrada nas grandes preocupações da actualidade e prosseguindo a missão de construir soluções suportadas por competências e instrumentos tecnológicos, e sem detrimento de recursos humanos.
As medidas de isolamento social impostas pelo esforço de contenção da pandemia provocada pelo novo coronavírus impuseram a maior convulsão económica, laboral, social e política no nosso país desde a revolução de Abril, no último quartel do século passado. Não podemos perder a oportunidade de reconstruir neste momento de transição um ecossistema democrático vigoroso que reequilibre o papel do Estado e das forças de mercado no futuro da sociedade. Temos o dever, como cidadãos e contribuintes, de preparar colectivamente a agenda e debate públicos que terão lugar quando o surto pandémico estiver controlado, com o objectivo de facilitar a retoma económica e também de disseminar a adopção de valores inter-geracionais, como a protecção à saúde e ao ambiente. Tal como muitos empresários se sentem forçados a utilizar o período de paragem obrigatória para planear um ajustamento estratégico, identificando e antecipando novas oportunidades de negócio e modelos de trabalho facilitados pelas tecnologias digitais e pela construção de alianças e parcerias que propiciam economias de experiência e de gama, também nós, como cidadãos, precisamos de planear uma reorganização colectiva que permita a resolução de dilemas profundos e fundamentais para o futuro da sociedade. Crises graves como a que enfrentamos geram terreno fértil à manipulação de narrativas de (des)informação política por actores e organizações nacionalistas e radicais. Urge combater esta oportunidade, redimindo a sociedade civil como elemento crítico – e todavia tão esquecido – no funcionamento da democracia. Assim transformaremos a indesejada invasão biológica no triunfo de instituições resilientes e alinhadas ao propósito colectivo de garantir uma sociedade sustentável no século XXI.
[1] Peter A Hall and Michele Lamont, eds. 2009. Successful Societies: How Institutions and Culture Affect Health. Cambridge, UK and New York: Cambridge University Press.
[2] Nota: a autora exerceu funções a título voluntário e gratuito nos órgãos sociais da APDSI. Paga a pequena quota anual devida à Associação e nunca auferiu qualquer rendimento da sua actividade associativa.