“As autoridades chinesas mobilizam-se mais do que nunca para fazer com que seja a China a ganhar, a fim de justificar o seu modelo político, não só internamente, agora também externamente, e o seu discurso transformou-se numa propaganda caricatural.” Thomas Gomart, director do Instituto Francês das Relações Internacionais
Ninguém ri do “palhaço”
Estava desaparecido desde meados de Março, “reemergiu” na terça-feira, quando as autoridades anti-corrupção chinesas assumiram publicamente que Ren Zhiqiang, rico, poderoso e influente crítico do Partido Comunista Chinês (conhecido como “O Canhão” pela sua acutilância e frontalidade) estava a ser investigado por “violações graves da disciplina e da lei”, o que normalmente quer dizer, no linguajar oficial, que é suspeito de corrupção. A dureza do artigo de Ren sobre o discurso do Presidente Xi Jinping de 23 de Fevereiro, acusando as velhas práticas da propaganda e bajulação do partido de terem contribuído para a pandemia, foi mal recebida em Pequim. “Aquilo que vi foi o completo oposto da ‘importância’ noticiada por todo o tipo de media e online. Não vi um imperador exibindo as suas ‘roupas novas’, mas um palhaço que estava totalmente nu e insistia em continuar a ser imperador”, escreveu O Canhão. E, parecendo antever o desfecho que as suas palavras precipitariam, acrescentou: “Apesar de vestires uma série de tangas, numa tentativa de cobrir a realidade da tua nudez, de maneira nenhuma consegues esconder a ambição de ser imperador ou a determinação de destruir quem se atravessar no teu caminho.”
O vírus da liberdade de expressão
“A liberdade de expressão é como um vírus e pode ser ofensiva para alguns organismos”, conta Ai Wei Wei em entrevista ao El País. Para o dissidente chinês, um dos artistas contemporâneos mais populares do momento, se o “desastre” do coronavírus se tornou uma pandemia desta dimensão, a culpa é “em grande parte” da China, que “ocultou a verdade” no princípio. O artista que foi preso, vigiado e condicionado pelas autoridades chinesas até partir para o exílio em Inglaterra em 2015, afirma que Pequim, em vez de “assumir as suas responsabilidades” na pandemia, anda agora a “politizar os princípios humanitários”, trocando ajuda por favores políticos. Paralelamente, vende ao mundo a eficiência do país para combater a pandemia. “Mas pagou um preço que não é visível: a saúde emocional de toda a sua gente, que encerrou em jaulas como animais, obrigados à força a estar confinados durante mais de dois meses”, explica Ai Wei Wei. Uma reportagem de televisão da CBC mostra como as autoridades chinesas soldaram portas de edifícios e deixaram gente com covid-19 presa nas suas casas. Os gritos de uma mulher desde a varanda do seu apartamento a pedir ajuda para a mãe que estava a morrer dão ideia que a China pode ser eficiente a conter a doença, mas falta-lhe, se calhar, um pouco de humanidade.
O Twitter é uma arma
Desde Abril do ano passado, a diplomacia chinesa tem-se lançado ao Twitter como ferramenta para difundir o discurso oficial da República Popular e arma para atacar todos aqueles cujo discurso a China e o Partido Comunista Chinês consideram capaz de perturbar a sua mensagem. Segundo a Alliance for Securing Democracy, o número de diplomatas chineses que abriu contas na rede social proibida na China cresceu 250%. Aparentemente, a abordagem chinesa à difusão de informação deixou de ser apenas a de “suprimir o conteúdo crítico e amplificar a cobertura positiva”, como até aqui. Numa russificação táctica, a máquina de propaganda chinesa parece estar a adoptar a prática de promover múltiplas teorias da conspiração e desinformação nos media e nas redes sociais do mundo ocidental. No dia a seguir à Organização Mundial de Saúde ter declarado o surto do novo coronavírus como uma pandemia, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Zhao Lijian, promoveu no Twitter a teoria falsa de que o vírus teria origem nos Estados Unidos, muitos diplomatas chineses partilharam o tweet e os meios de informações oficiais publicaram muitos artigos sobre o assunto, transformando uma invenção num trend topic das redes sociais.
2/2 CDC was caught on the spot. When did patient zero begin in US? How many people are infected? What are the names of the hospitals? It might be US army who brought the epidemic to Wuhan. Be transparent! Make public your data! US owe us an explanation! pic.twitter.com/vYNZRFPWo3
— Lijian Zhao ??? (@zlj517) March 12, 2020
China Daily Telegraph
Durante o mês de Março e até 3 de Abril, um dos principais diários britânicos foi a janela para a versão chinesa da informação sobre o coronavírus. Segundo o Buzz Feed News, o site do Daily Telegraph manteve uma secção chamada People’s Daily Online, bem visível nas suas letras vermelhas, que prometia “todas as histórias novas sobre o dinâmico desenvolvimento da China contemporânea, a sua cultura diversa e infra-estruturas de topo mundial”. Havia referência que se tratava de publicidade, mas quem clicasse entrava para uma normal homepage de um site noticioso, produzido pela imprensa oficial chinesa. O Diário do Povo é o órgão oficial do Governo e do Partido Comunista Chinês. O Daily Telegraph é apenas um dos vários jornais do mundo onde a China tem vindo a investir para ganhar mais simpatia para a sua visão da realidade ou para “difundir notícias a partir de uma perspectiva chinesa”. A CGTN, por exemplo, pretende estabelecer-se como um canal televisivo de notícias global em inglês como a Al Jazeera. Numa altura em que o Governo de Boris Johnson prevê reduzir o orçamento da BBC e despedir correspondentes, a CGTN pode transformar-se numa alternativa apetecível, com uns cofres bem mais fundos que qualquer outra emissora internacional de notícias.