O mapa da covid-19 que tem mais de 1000 milhões de visitas todos os dias

Começou quando a pandemia era um surto numa longínqua cidade chinesa e mostrou ao mundo como a infecção alastrava dia após dia, até bater à nossa porta. É talvez o mapa da infecção pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 mais popular que existe.

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É “apenas” um simples mapa do mundo em fundo preto onde encontramos bolas vermelhas de diferentes tamanhos a marcar algumas (quase todas, por esta altura) regiões do globo. Em destaque, há um número a vermelho (total de casos), outro a branco (mortes) e outro ainda a verde (a esperança dos recuperados). A leitura é simples e imediata. A ferramenta concebida pelo Centro para Sistema de Ciência e Engenharia da Universidade de Johns Hopkins é consultada diariamente por mais de 1000 milhões de pessoas. O termo não é adequado mas é inevitável: sim, é um mapa da covid-19 que se tornou viral.

Começou como começam muitos dos projectos que acabam por ter muito sucesso, por acaso. Um aluno de doutoramento de Lauren Gardner estava a trabalhar numa ferramenta para acompanhar os focos de infecção do sarampo nos Estados Unidos quando o novo coronavírus que causava uma grave forma de pneumonia foi identificado na China, em Dezembro de 2019. Não terá sido coincidência o facto deste aluno, Ensheng Dong, ter família a viver na China e alguns amigos a viver em Wuhan. Dong começou a seguir o rasto desta estranha doença. A 22 de Janeiro, o estudante de engenharia civil e de sistemas dedicado à análise da epidemiologia de doenças na Universidade de Johns Hopkins e a sua orientadora, Lauren Gardner, lançaram o dahsboard (numa tradução literal seria o painel de controlo) que conquistou o mundo.

“Foi um pouco de decisão do momento quando dissemos: vamos construir este conjunto de dados e continuar a fazer isto, vamos torná-lo público. E vamos em frente e visualizá-lo enquanto estamos a fazer isto. Construímos um painel naquela noite”, recorda Lauren Gardner numa notícia publicada esta semana no site da revista Nature.

Os gráficos não são os mais sofisticados que existem sobre o assunto, mas o principal trunfo desta incrível base de dados em tempo real será precisamente a sua simplicidade. O mapa e a suas bolas vermelhas, os números destacados no topo, garantem uma leitura imediata, clara. Actualmente, este site da Universidade de Johns Hopkins será considerado por muitos especialistas a principal fonte de informação sobre covid-19.  Em muitos dias, era (e continua a ser) possível encontrar ali dados mais actuais do que nos sítios oficiais, como por exemplo da Organização Mundial da Saúde (OMS).

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A epidemiologista Lauren Gardner Will Kirk/Johns Hopkins University

Foram muitas noites sem dormir e alguns percalços inevitáveis pelo caminho. Numa apresentação que Lauren Gardner fez em Março sobre esta ferramenta, a epidemiologista lembrou, por exemplo, que num sábado os dados falharam porque Ensheng Dong adormeceu nessa manhã. A equipa de meia dúzia de pessoas fazia turnos seguidos de 24 horas para recolher e publicar os dados. Com a doença a alastrar-se, a tarefa tornou-se insustentável. Surgiam problemas técnicos, com os servidores a ceder ao inesperado tráfego e o sistema a colapsar. O projecto cresceu, há cerca de duas dúzias de pessoas nos bastidores deste painel de controlo mundial e várias empresas ofereceram ajuda. Agora, os dados já entram no site quase de forma automática, hora a hora. A máquina está bem oleada.

Enquanto se fortaleceram as estruturas desta ferramenta tornando-a cada vez melhor e mais robusta, os seus leitores reconheceram-lhe o mérito e retribuíram com insistentes partilhas do endereço do site nas redes sociais. As audiências cresceram. No artigo publicado na Nature e numa entrevista da epidemiologista publicada na revista Science, confirma-se a popularidade de um site sobre a covid-19 que tem mais de 1000 milhões de visitas diárias. É obra.

O público-alvo era inicialmente a comunidade científica, outros epidemiologistas e especialistas que trabalham com modelos matemáticos e bioestatística, por exemplo. Um artigo publicado na revista The Lancet Infectious Diseases a 19 de Fevereiro em que se descreve este site já tem quase 100 citações, segundo o Google Scholar. Mas o eco chegou muito mais longe. O mundo todo gostou e aderiu, hoje serão poucos os especialistas ou jornalistas que escrevem sobre esta matéria que não têm esta morada na barra dos favoritos. Lauren Gardner confessa que foi sobretudo o interesse do público em geral a surpreendeu.

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Ensheng Dong, o aluno que começou o projecto Will Kirk/Johns Hopkins University

As fontes dos dados ali publicados incluem redes sociais, a OMS, os Centros de Prevenção e Controlo de Doenças dos EUA, o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças, as autoridades de saúde na China, departamentos de comunicação e saúde de todo o mundo. Os dados são recolhidos, agregados e publicados no GitHub, uma conhecida plataforma de software. A partir daqui, explica Ensheng Dong na notícia da Nature, são enviados para a plataforma ArcGIS (um sistema de informações geográficas para trabalhar com mapas e informações geográficas) da empresa Esri, que processa o painel e suas visualizações. Aliás, esta empresa norte-americana é agora um dos parceiros do projecto.

O mapa da Universidade de Johns Hopkins abriu várias portas, a exposição que tem tido já levou a novas colaborações e até alguns “pacotes” interessantes de financiamento. Com o apoio da agência espacial NASA, por exemplo, a equipa vai estudar o impacto da “sazonalidade e clima” no novo coronavírus.

Até agora, houve pouco tempo para dedicar a outra coisa que não fosse manter o mapa a funcionar. “Esta última semana foi a primeira vez que passamos algum tempo a fazer mais matemática do que recolha de dados e foi muito mais divertido”, diz Lauren Gardner. Na calha está a análise de variáveis como as taxas de mortalidade e o número de testes realizados. A verdade é que estes investigadores da Universidade de Johns Hopkins estiveram até há bem pouco tempo numa espécie de bolha, focados apenas na recolha e publicação de dados enquanto o mundo se assustava cada vez mais com os avanços da doença que eram reportados. “Fiquei tão distraída que acho que vou ter um pouco de atraso no processamento da situação real da epidemia quando as coisas abrandarem aqui”, admite a epidemiologista.

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