Covid-19: há um indicador chamado R0 que vale muito
Baixar o valor de número médio de contágios causados por cada pessoa infectada (o chamado R0) é muito importante. Mas é preciso também sermos capazes de prevenir uma segunda onda epidémica quando as medidas restritivas de contenção forem levantadas.
Quando surge uma nova epidemia, um dos muitos indicadores usados pelos especialistas é o número médio de contágios causados por cada pessoa infectada, mais conhecido como R0 (0 de zero). De acordo com a Direcção-Geral de Saúde, neste momento o R0 em Portugal situa-se um pouco acima de dois, o que significa que cada pessoa infectada contagia em média cerca de duas pessoas. A Organização Mundial da Saúde mantém há já algum tempo que a nível mundial o R0 se situa entre os 2 e 2,5. Mas, afinal, o que queremos com este número? Que desça e faça diminuir o número de novos casos ou que abrande, mas de forma controlada para evitar uma segunda onda epidémica?
Nos dias que correm, somos todos especialistas em covid-19. Temos todos um pouco de epidemiologistas, infecciologistas, matemáticos ou peritos em saúde pública com um conselho ou um palpite para dar sobre este assunto. Todos, como convém a qualquer investigador que se preze, temos perguntas sobre este vírus que achamos que ainda ninguém respondeu de forma clara. Duvidamos das previsões sobre a curva, comentamos a probabilidade de uma segunda onda epidémica e arriscamos estimativas para a taxa de mortalidade (e de letalidade, mais recentemente) deste novo coronavírus. É normal, porque nos preocupa a todos. Mas nem sempre percebemos tudo o que é dito, todos os modelos e todos os cenários repletos de diferentes e complexas variáveis. O que também é normal, porque, na verdade, não somos todos especialistas nesta matéria.
Entre os muitos indicadores que há sobre o novo coronavírus SARS-CoV-2 fala-se discretamente desde o início da epidemia (quando ainda era um surto em Wuhan, na China) do “número básico de reprodução”, mais conhecido como R0. E o que é isto? “A transmissibilidade de um patógeno pode ser medida pelo número de reprodução, R, que mede o número médio de infecções geradas por cada pessoa infectada”, explica ao PÚBLICO Nuno Faria, professor associado em epidemiologia genómica da Universidade de Oxford, Reino Unido. O valor de R é importante para vários aspectos. Diz-nos como a infecção se está a disseminar na comunidade, se está a aumentar ou a abrandar, e permite fazer previsões para fundamentar decisões de defesa de saúde pública.
Mas também há coisas que este valor não nos diz. Como a gravidade da doença. A taxa de mortalidade é essencial para qualquer equação onde se coloque o R0. A gripe sazonal, por exemplo, terá um R0 superior a 1 (há especialistas que falam em 1,8 outros em 1,3) a varicela terá um R0 de cerca de 5, o sarampo terá um R0 que, segundo um estudo recente, pode variar entre 3,7 e 203. Estimativas sobre o R0 da versão da epidemia de SARS-CoV em 2002-2003 situavam-se em cerca de 3. Mas o que é preferível: ser vítima de um vírus que é altamente contagioso mas que não é perigoso ou o contrário? A verdade é que não queremos nenhum dos dois.
Ainda que na maioria dos casos este novo coronavírus não seja fatal e se manifeste com sintomas ligeiros, também é certo que quantas mais pessoas infectar, mais casos graves teremos. Em períodos em que R0 é superior a 1, “o surto torna-se auto-sustentável e tende a crescer – especialmente se medidas de controlo efectivas como vacinas, tratamento e quarentena, não forem introduzidas para reduzir a sua transmissão”, explica Nuno Faria. Assim, é fácil concluir que quando o R0 é inferior a 1 “pode ainda acontecer alguma transmissão entre humanos, mas o número de casos vai reduzindo ao longo do tempo até que, eventualmente, o surto termina”.
Como está o R0 em Portugal? “Neste momento o R0 situa-se um pouco acima de dois”, refere Rita Sá Machado, médica de saúde pública e chefe de Divisão de Epidemiologia e Estatística da DGS em entrevista ao PÚBLICO. Sem queremos lançar uma confusão ainda maior, a especialista fala ainda de um outro R que é o R efectivo e que, segundo explica, “tem a ver com o número de pessoas que neste momento podem ser infectadas com as medidas que já estão a ser incluídas”. E, já agora, diz-nos então que “o R efectivo – que tem descido substancialmente – ainda se encontra acima de 1, também de uma forma muito ligeira”. Qual é o plano?
Resumidamente, os dois precisam de descer. Mas isso não chega para perceber tudo, como já se disse. “O R0 e o R efectivo são dois bons indicadores, mas precisamos de juntar outras componentes para conseguimos perceber o que está a acontecer”, sublinha Rita Sá Machado.
Um dos documentos oficiais da DGS sobre a covid-19 adianta ainda que o chamado “limiar da transmissão ocorre “quando o número básico de reprodução (R0) é igual a 1”. “Para valores abaixo deste, a infecção é incapaz de se manter na população; para valores superiores existe a possibilidade de disseminação da infecção”, clarifica a autoridade nacional de saúde.
Ricardo Águas, especialista em modelação matemática de doenças infecciosas, investigador principal da Universidade de Oxford (Reino Unido), começa por referir é muito difícil calcular com precisão o valor de R0 mas que este indicador tem uma importância vital. E comenta os números avançados pela especialista da DGS: “O valor de R0 referido está perfeitamente dentro do intervalo de incerteza, se bem que as últimas estimativas indiquem que o seu valor real seja mais próximo de 3 que 2”. No entanto, “sugerir que o R [efectivo] continua acima de 1 tem implicações dramáticas”, constata para em seguida explicar: “Se o R0 era pouco acima de 2 e [o R efectivo] continua acima de 1, isso quer obrigatoriamente dizer que as medidas impostas tiveram um efeito reduzido. Admitindo que o R0 seja 2.5, com uma redução de 60% tornar-se-ia 1. Logo, se continua acima de 1, a transmissão foi reduzida em menos de 60%.”.
O desafio de manter o R0 baixo
A OMS fala num valor de R0 na ordem dos 2,5. Porém, há muitos investigadores a trabalhar neste assunto e há outras estimativas. Um desses estudos publicado no Journal of Travel Medicine já apontava no final de Fevereiro para uma estimativa de 3,28. Um outro trabalho publicado na Science dedica-se ao caso da China. Aqui lemos que o esforço inicial de contenção da doença reduziu o R0 de 2,38 (entre 24 de Janeiro e 3 de Fevereiro) para 1,36 (24 de Janeiro a 8 de Fevereiro). Com as restrições de viagens e mobilidade, este valor terá caído mais tarde para 0,99, escrevem os autores no artigo publicado a 16 de Março. Sobre o caso crítico de Itália, um estudo de uma equipa de cientistas italianos divulgado esta semana na plataforma de pré-publicações de acesso aberto medRxiv revela que o R0 na Lombardia era de 4 até 8 de Março.
Num artigo de opinião publicado esta semana no PÚBLICO, a investigadora Gabriela Gomes, matemática especialista em epidemiologia da Escola Superior de Medicina Tropical de Liverpool, no Reino Unido, explicava que a estratégia de supressão “baseia-se na aplicação de medidas mais intensas capazes de manter o número médio de contágios causados por cada pessoa infectada abaixo do limiar epidémico (R0 = 1)”. Até aqui tudo bem, o problema é que há um lado menos positivo. “Estas medidas impedem que se desenvolva imunidade de grupo, esperando-se a ocorrência de uma segunda onda de doença logo que seja levantado o distanciamento social”, avisava a cientista.
Esta quinta-feira, em resposta ao PÚBLICO, Gabriela Gomes adianta que “se quiséssemos induzir imunidade de grupo com uma vacina para impedir a segunda onda, quando maior o R0 maior o stock de vacina que precisaremos”. Ou seja, o desafio é manter o R0 até uma vacina. Segundo as suas contas, “o R0 está actualmente a passar de 1,5 tendo descido de um valor inicial de 2,7 por acção das medidas de contenção”. A cientista faz questão de salvaguardar que todas estas estimativas estão sujeitas a muitas incertezas. Mas arrisca. “O R efectivo estará muito próximo de 1, ou seja, estamos a chegar ao tão falado ‘pico’ [de casos confirmados] ou ‘planalto’”, adianta, sublinhando que “a intensificação das medidas de contenção nesta fase é crítica”. “Estamos numa prova de ‘100 metros’ para reverter a primeira onda; a ‘maratona’ será depois para impedir que aconteça uma segunda antes de termos uma vacina.”
Servindo-se do exemplo de Itália, Gabriela Gomes refere que é possível ver ali “o que se espera em Portugal com cerca de 11 dias de atraso”, concluindo ainda que, por esta altura, “em Itália tanto o R0 como o R efectivo já terão descido abaixo de 1”. As estimativas que nos apresenta (ver gráfico) “referem-se apenas ao ajuste do modelo a casos confirmados, não se referem a mortes”. A investigadora nota ainda que, para efeitos de comparação, é preciso lembrar que as medidas de contenção em Portugal tiveram início mais cedo na epidemia do que as de Itália. “Isso coloca-nos em posição de conseguir melhor supressão desta primeira onda. A intensificação de medidas que acaba de ser decretada terá a partir de agora um papel crítico no alcance dessa finalidade. Mais uma vez a decisão dos nossos políticos foi exemplar”, insiste.
Num outro artigo que o pneumologista Jaime Pina assinou no PÚBLICO também se fala do R0. Desta vez, sublinha-se a nossa influência no aumento do R0. Somos muitos, a viver muito perto e a viajar muito rápido de um lugar para o outro. Connosco seguem os vírus e com isso aumentamos o R0. Para o travar temos de parar. Ficar em casa.