Os bailarinos de rua

O bailado não lhes deixa tempo para pensar muito. Por vezes vem a mágoa. Quando alguém no passeio foge deles. “Somos os homens do lixo. Devem pensar que estamos cheios de vírus.” Mesmo em tempos de isolamento por causa da pandemia do novo coronavírus, há quem não consiga ficar em casa. Nos próximos dias, a crónica fotográfica Picar o Ponto apresenta sete profissões que não podem parar.

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Adriano Miranda
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São 9h15. Num bairro de vivendas e poucos prédios, no concelho da Maia, estaciono o meu carro no local combinado. Espero uns dez minutos. Chega o volvo. O camião da recolha do lixo. Três homens. O Jorge, o condutor. O Joaquim e o Luís, os “atletas.” Afáveis. Cordiais. Perguntam como quero fazer. Só me dão duas hipóteses. Ou vou no meu carro ou vou a pé. Escolhi ir a pé. “Olhe que é cansativo.” Expliquei que estava ali para saber como era. Imaginava ser duro. Imaginava ser perigoso. Mas queria deixar de imaginar. Um banho de realidade ensina-nos muita coisa.

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A ordem de partida foi dada. Jorge conduz o volvo muito devagar. Quase sempre a travar. Os condutores aprendem a travar com o motor. Não há travões que resistam a tanto desgaste. Joaquim e Luís correm como bailarinos. Um vai ao passeio da direita. Outro vai ao passeio da esquerda. Depois, quase na perfeição da sincronização, encontram-se na traseira do volvo. Encaixam os dois contentores. Carregam num botão. E num movimento mecânico, os contentores sobem em plano inclinado. Ouve-se barulho. Muita coisa cai. Depois o movimento inverso. E os mesmos passos de dança.

São muitas casas. Muitos contentores. A Maia é um dos melhores concelhos do país a tratar os seus resíduos. E isso nota-se na rua. A cada porta um contentor de 140 litros. Chamam-lhe recolha porta a porta. O Joaquim e o Luís tratam os contentores castanhos por tu. Conhecem-nos bem. Sabem onde os encontrar. Junto a um portão. Numa esquina. Numa casa do lixo. Desde o estado de emergência, “os contentores estão mais cheios, as pessoas estão mais tempo em casa”. Luís ri. “Resolveram todos fazer limpezas.” E Joaquim acrescenta — “e resolveram todos cortar a relva e podar as árvores”. Mas estão lá eles. Sete horas de trabalho, na dança dos contentores. E a pausa para “uma bucha.”

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Luís tem os The Doors tatuado num braço. Dá-lhe mais força. É como uma vitamina. Dizem que não necessitam de ir ao ginásio. Fazem exercício todos os dias. “O pior é a chuva e o frio. No Inverno é terrível. Mas alguém tem que fazer este trabalho.” Jorge, Joaquim e Luís gostam da sua profissão. Sabem que neste momento correm riscos. Cada contentor pode ser um foco de infecção do novo coronavírus. Só usam luvas. O bailado não lhes deixa tempo para pensar muito. Por vezes vem a mágoa. Quando alguém no passeio foge deles. “Somos os homens do lixo. Devem pensar que estamos cheios de vírus.”

 Já dentro da cabine, a viagem agora é bem mais rápida. O volvo está cheio e o caminho é a Lipor II. Entramos num edifício enorme. Chamam-lhe a fossa. Milhares e milhares de toneladas de resíduo indiferenciado. Uma garra dentada vai apanhando o lixo que depois de queimado gera energia eléctrica. O governo quer que todos os resíduos indiferenciados sejam queimados. Uma forma de garantir a eliminação do vírus.

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Jorge manobra o volvo. Joaquim ajuda nas manobras. Lentamente a traseira do camião encosta à fossa. A báscula começa a subir. As oito toneladas de lixo começam a cair. Olhamos para a fossa imensa. A fossa do consumo. O consumo imenso. Os três cantoneiros de limpeza, muito melhor que “homens do lixo”, partem para mais uma viagem. Mais um bailado. Mais uma luta. Agora que quase todos estão em casa, recolhidos, abrigados do vírus, poderão ir à janela, à varanda, ao quintal, e ver ao vivo heróis que bailam com contentores. As coisas que um vírus nos ensina.

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