E depois da covid?
Ao contrário da crise iniciada em 2007, em que o sistema produtivo ficou paralisado por um “liquidity squeeze” com origem no sistema financeiro, a covid-19 afetou diretamente o sistema produtivo naquilo que é o seu motor central – as pessoas.
Em 6 de janeiro de 2020, num artigo que publiquei (2020 – O início de um novo ciclo?), identifiquei algumas das ameaças e fragilidades que a economia portuguesa enfrentava a partir de dentro (“as incertezas de dentro”) e a partir de fora (“as incertezas de fora”), tendo alertado para o risco da trajetória que prosseguíamos ser interrompida a qualquer momento uma vez que os desequilíbrios internos e externos que persistiam não nos permitirem responder a um qualquer evento inesperado (externo ou interno) de forma suficientemente robusta.
Esse evento surgiu de forma insuspeita sob a forma da covid-19 e os seus efeitos, quer do ponto de vista da saúde, quer do ponto de vista económico, são incontornáveis, podendo a sua história ser contada em quatro capítulos.
Primeiro capítulo – Os mercados financeiros
Tal como em situações anteriores, os mercados financeiros foram os primeiros a sinalizar o impacto da enorme crise de saúde pública.
Na realidade, entre o dia 19 de fevereiro e o dia 1 de abril de 2020, os principais índices acionistas registaram quedas acentuadas (por exemplo, o FTSE MIB e o Eurostoxx 50 registaram perdas de, respetivamente, 35,1% e 31%).
Paralelamente, assistiu-se a uma “fuga para a qualidade”, com a dívida alemã a ser beneficiada em detrimento da dívida dos periféricos (entre 19 de fevereiro e 1 de abril os yields da dívida pública alemã a 10 anos desceram 3 pontos base e os da dívida pública portuguesa subiram 66 pontos base).
Segundo capítulo – A atividade económica
Ao contrário da crise iniciada em 2007, em que o sistema produtivo ficou paralisado por um “liquidity squeeze” com origem no sistema financeiro, a covid-19 afetou diretamente o sistema produtivo naquilo que é o seu motor central – as pessoas.
Com efeito, a paralisação da atividade que estamos a observar em alguns países é mais severa do ponto de vista económico do que a que corresponderia à entrada de um país em guerra.
O circuito é fácil de identificar. Choque, instantâneo e simultâneo, do lado da procura (por via da menor procura de bens e serviços) e do lado da oferta (por via da paralisação/condicionamento da atividade), com efeito nas receitas das empresas (e na sua capacidade de pagar os compromissos) e, consequentemente, no nível de emprego e na receita fiscal.
Em Portugal, e assumindo que os setores mais afetados serão os do alojamento, restauração, comércio e indústria, podemos concluir que mais de 400 mil empresas poderão ser afetadas (30,8% das empresas), colocando em risco 1,9 milhões de trabalhadores (45,8% dos trabalhadores), 256 mil milhões de euros de volume de negócios (60,4% do total do volume de negócios das empresas) e um valor acrescentado bruto (VAB) de quase 48 mil milhões de euros (43,6% do total gerando pelas empresas).
Terceiro capítulo – O sistema bancário
Num contexto em que na Europa as medidas tradicionais de política monetária estão esgotadas, o Banco Central Europeu (BCE) decidiu autorizar os bancos a operarem temporariamente abaixo do nível de capital definido para o pilar 2, para a reserva de conservação de capital e para o rácio de cobertura de liquidez.
Este transitório alívio dado pelas autoridades ao funcionamento do sistema bancário, não evitará, no entanto, o inevitável. Um sistema bancário muito condicionado pelas baixas de juro e em que os resultados têm origem, em larga medida, no comissionamento, nos resultados de operações financeiras e na libertação de imparidades, terá de se ajustar a um novo contexto em que a) os níveis de comissionamento terão de ser reduzidos; b) o aumento dos yields da dívida pública dos países periféricos penalizarão as elevadas exposições dos bancos a esses ativos (com efeitos em resultados e na base de capital); e c) a sinistralidade empresarial fará disparar o nível de imparidades.
Tudo isto, conduzirá, tal como no passado, à intervenção do Estado em alguns bancos, à resolução de outros e/ou a fenómenos de concentração bancária.
Quarto capítulo – O Estado
O abrandamento da atividade económica, com consequente redução das receitas fiscais, associadas ao acionamento dos denominados estabilizadores automáticos geradores de maiores despesas, ampliados por medidas de emergência sem precedentes, irão causar uma enorme pressão sobre as finanças públicas.
Esta pressão sobre as finanças públicas, não será, no entanto, igual em todas as geografias, uma vez que para alguns países, os graus de liberdade são nulos em resultado do elevado nível de endividamento do Estado.
No caso português, e se admitirmos um cenário base de quebra do PIB nominal de 7,5% com uma redução nas receitas correntes de 7,7% (queda nas receitas fiscais e nas contribuições sociais igual à crise de 2009 e de 2012, respetivamente) e um aumento da despesa corrente de 6,7% (aumento de 9,9% das prestações sociais igual ao observado em 2009), teremos um défice público projetado para o final de 2020 de 6,8% do PIB, com o rácio da dívida pública em percentagem do PIB a subir para uns históricos 135,4%.
Reflexão final
Nos últimos anos a sociedade em geral, e algumas organizações em particular, têm desprezado profundamente o conhecimento e a cooperação.
Contudo, esta enorme crise de saúde pública, com consequências económicas inimagináveis, não pode ser resolvida sem quebrar esse paradigma.
Esperemos que este momento crítico que vivemos, pela sua singularidade, sirva como ponto de partida para que as organizações/países possam ser geridas com base nesses princípios e não sirva, tal como aconteceu em crises anteriores, para “branquear” a incompetência daqueles que, gerindo de forma ineficiente/negligente as organizações/países, fragilizaram o “sistema imunitário” da estrutura económico-financeira.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico