Hospitais preparam-se para o “impreparável”: o aumento de doentes em cuidados intensivos
Número de doentes críticos com covid-19 internados em cuidados intensivos cresceu 20 vezes em menos de três semanas. Governo garante que vai duplicar o número de ventiladores, mas é preciso que os equipamentos cheguem a tempo do pico da pandemia em Portugal.
“Temos de estar preparados para o impreparável.” Gustavo Carona, médico no hospital de Pedro Hispano (Matosinhos), já sente na pele a pressão da escalada do número de doentes em estado muito grave que vão ocupando as camas do serviço de medicina intensiva. Habituado a lidar com doentes complexos, calejado pelos duros anos de missões humanitárias em África e no Médio Oriente, o médico intensivista admite, mesmo assim, que ainda está a aprender a lidar com a “imprevisibilidade e a complexidade” da covid-19. “É como andar num trapézio sem rede”, sintetiza.
Como os outros hospitais do país, o Pedro Hispano prepara-se para enfrentar a inevitável onda de casos que poderá levar ao colapso dos cuidados intensivos, à semelhança do que aconteceu em Itália e Espanha. Taveira Gomes, administrador e director clínico do hospital, engendrou estratégias para lidar com o pior cenário: o número de camas para doentes muito críticos duplicou, das dez do serviço passou-se para o dobro, graças ao aproveitamento da área de recobro da cirurgia de ambulatório, agora liberta de operações não urgentes — foram todas adiadas. Em menos de um mês, se os prazos forem cumpridos, uma nova ala com 11 camas, fora do hospital mas ligada ao serviço, estará pronta. O ginásio de medicina física vai albergar mais 17 camas, a activar em caso de catástrofe. “Olhamos para o número de doentes com preocupação. Está a subir muito depressa”, justifica Taveira Gomes, esperançado em que este aumento não atinja "um ritmo semelhante ao de Itália e Espanha”.
Com a pandemia causada pelo novo coronavírus em fase de crescimento exponencial, os dados oficiais são claros: o número de doentes com covid-19 internados em unidades de cuidados intensivos disparou nos últimos dias em Portugal. Em menos de três semanas, aumentou já mais de vinte vezes. Os dramáticos relatos de médicos e de enfermeiros italianos e espanhóis, obrigados a decidir quem salvam e quem deixam morrer, multiplicam-se. E as autoridades de saúde portuguesas desdobram-se em esforços para ganhar esta corrida contra o tempo.
Há duas semanas, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) lançou um programa de financiamento para adquirir a parafernália de equipamentos necessários, desde ventiladores, máquinas que ajudam doentes a respirar, a monitores cardíacos, bombas e seringas infusoras. Tudo para dotar os serviços e unidades de medicina intensiva que anos de desinvestimento deixaram quase à míngua — o rácio nacional de camas de cuidados intensivos por 100 mil habitantes (6.4) é dos mais baixos da Europa. Uma semana depois, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) mandou os hospitais reorganizarem os serviços e unidades de cuidados intensivos, activarem todas as camas de doentes críticos e reforçarem os recursos humanos e materiais.
Encomendas que tardam a chegar
O Governo espera conseguir duplicar a capacidade instalada em breve. “Temos 1142 ventiladores, dos quais 528 em cuidados intensivos, 480 nos blocos operatórios e mais 134 com capacidade de expansão”, não se tem cansado de repetir o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales. “Entre ofertas, compras e empréstimos, estaremos em condições de duplicar a nossa capacidade de ventilação”, voltou a garantir esta quinta-feira. Há 400 ventiladores invasivos doados por diversas entidades, “muitos dos quais já chegaram aos hospitais” ou vão chegar em breve, mais 140 ventiladores não invasivos cedidos a título de empréstimo. E da encomenda de 900 feita pela ACSS , 144 chegarão ainda esta semana, precisou.
A questão central é: os ventiladores anunciados chegarão todos a tempo para assegurar a resposta cabal ao pico do surto de covid-19 em Portugal? Sem que os epidemiologistas e outros especialistas se atrevam a precisar quando ocorrerá esse pico — que começou por ser previsto para uma data “à volta de 14 de Abril” para poucos dias depois ser atirado para o final de Maio – é difícil responder a esta pergunta. E haverá médicos e enfermeiros em número suficiente para assegurar a resposta?
“Os ventiladores compram-se, o espaço físico adapta-se, mas os profissionais de saúde não se fazem em fábricas”, responde Gustavo Carona. Se os médicos especialistas em cuidados intensivos faltam, ainda escasseiam mais os enfermeiros treinados nesta área altamente diferenciada — e é necessário um enfermeiro para cada dois doentes em cuidados intensivos.” Faltam médicos e enfermeiros para tantas camas”, corrobora Taveira Gomes.
“Ter enfermeiros treinados é um grande problema e formar médicos assim de repente é impossível. O que se recomenda é que os hospitais aproveitem os profissionais com treino em medicina intensiva, como anestesistas, internistas, cardiologistas”, especifica João Gouveia, que preside à Sociedade Portuguesa de Medicina Intensiva e lidera a task force recentemente criada pela Direcção-Geral da Saúde para organizar a resposta à pandemia.
“Estamos a tentar aprender com a experiência de Itália. A estratégia passa por maximizar ao máximo a capacidade instalada, recuperando ventiladores que estavam encostados e arranjando alguns com peças em falta – e estes são mais de uma centena. Estamos também a tentar que todas as ordens de compra sejam satisfeitas a tempo. Já há datas de chegada para alguns equipamentos, o que me deixa um pouco mais descansado”, diz.
Ter mais ventiladores e monitores cardíacos é vital. Um doente com covid-19 permanece mais tempo do que é habitual nos cuidados intensivos, uma média que oscila entre oito a 14 dias, mas que pode prolongar-se por várias semanas. A seguir a evolução da pandemia em Portugal com toda a atenção, João Gouveia espera que as previsões que apontam para um atraso do pico se cumpram. “Isso dá-nos tempo para nos conseguirmos organizar. Se os doentes chegarem todos ao mesmo tempo vai ser muito complicado”, antecipa. E dá o exemplo da Lombardia, no Norte de Itália, que tem o dobro das camas de cuidados intensivos: “Mesmo assim, o sistema sucumbiu.”
Se acontecer o mesmo em Portugal, os mais velhos e doentes terão de ser preteridos? Em cuidados intensivos, “todos os dias não são admitidos doentes por não terem potencial de benefício”, recorda o médico. Se chegarmos ao pior cenário, a fase de catástrofe, “a triagem terá que ser mais rigorosa, mas isto não significa à partida que os mais velhos serão os excluídos”. “A vida de um intensivista é tomar esse tipo de decisão. São situações dolorosas, de uma solidão enorme. Mas queremos que os doentes saiam com alguma qualidade de vida, não com o coração a bater e em grande sofrimento. A questão, agora, é a de saber se o limite habitual vai passar a ser balizado por padrões de desespero”, atesta Gustavo Carona.
Nas linhas orientadores dos planos de contingência, o que os especialistas não esquecem também é que vai ser necessário criar áreas, fora da tutela da medicina intensiva, para cuidados paliativos a doentes. É preciso garantir "o conforto e a paliação do sofrimento”.