As bocas inúteis

Quem escreve, embora de boa saúde, inscreve-se na agora designada idade de risco e está disposto a ceder o seu lugar na fila para os ventiladores a quem se reconheça maiores probabilidades de sobrevivência. Esperemos, porém, que em breve venham a ser suficientes para todos, sem descriminações. Não há bocas inúteis.

No final de 1945, Simone de Beauvoir publicou Les bouches inutiles, que seria a sua única experiência no campo do teatro. Tinha 37 anos e quatro anos depois publicaria O segundo Sexo. A acção decorre no século XIV em Vaucelles, na Flandres, que se rebelou e resiste ao cerco dos homens do duque da Borgonha. A cidade está faminta. Para economizar pão, e os soldados poderem continuar a ter forças para combater e os pedreiros para construir uma torre que parece ser essencial para a dignidade da cidade, é tomada a decisão de expulsar os velhos, as mulheres e as crianças, enviando-os para o fosso que rodeia o castelo, onde morreriam de fome. A trama evolui, a oposição de uma mulher faz revogar a decisão. Todos são armados, incluindo os velhos, as mulheres e as crianças, e partem ao assalto do acampamento do duque, que parece adormecido e será atacado de surpresa. A peça termina com a afirmação da vontade da comunidade, mas o espectador sai sem conhecer o êxito desta manobra heróica.

Beauvoir devia conhecer a peça El cerco de Numancia de Cervantes, que fala da “pestifera dolência da fome”, em que os habitantes de Numância, cercados durante vinte anos, preferem suicidar-se a oferecer-se como troféus ao general romano. Talvez também tivesse na memória o episódio de Massada da guerra entre israelitas e romanos, em que os israelitas também se imolaram.

A intenção de Beauvoir terá sido a de exaltar o espírito de sacrifício de uma população perante um usurpador, a exemplo do que tinha sido a resistência contra o nazismo. Por esses anos, depois de A Peste (1947), Camus publicaria a peça L’état de siège (1948), metáfora da luta contra a “peste castanha” que era o nazismo. Lembrando-se de cercos, Sartre escreveu Les séquestrés d’Altona, (1960), em que o auto-sequestrado depois da guerra é um nazi. A referência a Altona é significativa pois refere-se a uma cidade alemã isolada no âmbito da repressão das ideias socialistas decretada pelo Governo de Berlim em 1880.

Vem isto a propósito de duas palavras que na Europa ainda não ousamos pronunciar, assédio e peste, preferindo-lhes confinamento e pandemia, embora estejamos todos assediados pelo vírus e em “prisão domiciliária”. Os comportamentos das personagens masculinas da peça de Beauvoir, que se atribuem o direito de decidir sobre as vidas de metade da população, convidam à reflexão quando hoje vemos os médicos de todo o mundo forçados, por falta de equipamento, a ter de escolher entre salvar jovens ou velhos, optando quase sempre pelos primeiros, dada a sua melhor expectativa de sobrevida. Decisão que será dolorosíssima para os próprios médicos que tiverem de as tomar, tanto mais que o pessoal médico, como categoria, está entre as primeiras vítimas do coronavírus na Europa.

Numa entrevista de Bárbara Reis à bioeticista Maria do Céu Patrão Neves publicada neste jornal, é dito que, em diversas circunstâncias, os médicos podem ser forçados a decisões deste tipo, sendo lembrado o caso da aplicação hemodiálise, que só nos anos 1970 começou a ser acessível à generalidade dos pacientes graças à distribuição sistemática das máquinas aos hospitais. Antes era um bem raro e era preciso seleccionar quem devia prioritariamente aceder ao tratamento, com a morte certa para os restantes pacientes.

Séculos atrás, não se dispondo dos meios actuais, o coronavírus seria considerado uma quase invencível peste e os mortos seriam milhares e milhares. É elucidativo reler o Diário do Ano da Peste de 1665 de Daniel Defoe, o autor de dois livros bem mais ligeiros, Robinson Crusoé e Moll Flanders. Publicado em 1772, o livro é um pseudodiário da peste que atingiu Londres e matou 100.000 pessoas. Inclui descrições e até estatísticas e gráficos, que sob muitos aspectos coincidem com o que estamos vivendo, do confinamento à dificuldade das autoridades em desfazerem-se dos mortos, como está a acontecer em Itália. Mas também nas reacções que vão da solidariedade ao pânico irracional que gera egoísmos e discriminações, como recentemente aconteceu próximo de Cádis quando um grupo de idosos foi vilipendiado e atacado ao ser transferido para essa povoação em isolamento terapêutico. Ou em Portugal, onde algumas pessoas que se mudam das cidades para aldeias que talvez os tenham visto nascer são olhadas como um perigo para a população local.

Voltando à peça de Beauvoir, com a discriminação dos velhos, em bom ou mau estado, para “benefício” de quem decide dos seus destinos. Esta discriminação é um tema que tem vindo a ganhar actualidade. Christine Lagarde, ex-presidente do Fundo Monetário e agora presidente do Banco Central Europeu, tem vindo a insistir sobre os perigos da longevidade e de como os velhos são uma ameaça económica para os jovens, o que poderia levá-los à revolta. Pode supor-se que na tese da Lagarde, mais tarde, estes mesmos jovens farão de tudo para não ser longevos. Na mesma onda se inscreve a opinião de um holandês, o epidemiologista Frits Rosendaal, que, a propósito dos estragos do coronavírus na Itália, afirmou: “Em Itália, a capacidade dos cuidados intensivos é tratada de maneira muito diferente, ali receberam pessoas que nós não incluiríamos por serem muito velhas. Na cultura italiana, os idosos têm uma posição muito diferente.” Dava talvez voz ao que, a julgar por reacções recentes, poderíamos legitimamente pensar ser também o ponto de vista do próprio Governo dos Países Baixos.

Em Portugal, felizmente, o Governo e a classe médica têm optado por uma óptica completamente diferente, procurando tratar todos os cidadãos de igual modo, mas chamando a atenção para o cuidado particular a ter com os idosos, seja defendendo-os do vírus, seja não os excluindo, por sistema, dos tratamentos disponíveis. Mas há também que prevenir as reacções discriminatórias dos cidadãos, emotivamente exasperados pelo isolamento e pelo bombardeamento televisivo de notícias dolorosas, que podem começar a procurar nos seus vizinhos (no outro) os bodes expiatórios deste drama, com o risco de aumentar a agressividade social. Os partidos devem ter neste contexto uma postura moderadora, em vez de tentarem obter dividendos políticos das carências no combate a um vírus que ninguém podia estar preparado para enfrentar.

José Saramago, nos romances Ensaio sobre a Cegueira (1995) e As Intermitências da Morte (2005), mostra-nos duas diferentes cidades afectadas por estranhos morbos, num verifica-se a disseminação da cegueira entre os habitantes, no outro, misteriosamente, as pessoas deixam de morrer. Em ambos os casos, a consequente desordem social engendra comportamentos extremos, que desejamos não se reproduzam na Europa assediada pelo coronavírus.

Quem escreve, embora de boa saúde, inscreve-se na agora designada idade de risco e está disposto a ceder o seu lugar na fila para os ventiladores a quem se reconheça maiores probabilidades de sobrevivência. Esperemos, porém, que em breve venham a ser suficientes para todos, sem discriminações. Não há bocas inúteis.

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