Dia 10: Os avós não precisam de salvar os filhos dos netos
Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação infantil. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidade, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.
Querida mãe,
Sabe o que me provoca mesmo indignação? O facto de haver tantas refeições!!! Desde que a quarentena começou os meus pratos não poisam nas prateleiras. É mesa, máquina, mesa, máquina, num ciclo sem fim! Nunca me convenceu muito a moda do jejum intermitente, mas estou quase a pôr a família toda nesse regime...
Enfim, desabafo feito.
Segunda indignação, vamos lá então: Se os filhos ajudam o suficiente nas tarefas domésticas? Não. Nem os maridos, normalmente! As mães pedem ajuda, sequer? E pedindo, aceitam a ajuda que lhes é dada? Parece-me que não. Ainda hoje tive de engolir a minha vontade de voltar a dobrar a roupa toda que a minha filha Martinha tinha implorado para dobrar, porque não estava como eu o faria. A questão é saber se isso é um problema para a família? Porque se for, acho que até a mãe mais zen acabará por arranjar forma de exigir mais.
Nestes dias, que têm sido de uma intensidade enorme, tenho a certeza, que as mães e os pais aumentam os pedidos de ajuda, e aumentam também a assertividade, sentindo-se menos culpados por o fazerem. E, acredito, que as crianças reagem a isso de forma positiva.
Mas, às vezes, fico com a impressão de que os avós acreditam que só o que se faz “em esforço”, é que conta como boa educação. Não há dúvida nenhuma que os tempos mudaram. E, se reparar, não é só nas relações entre pais e filhos. Empregados e empregadores, políticos e eleitores, marcas e consumidores, todos tomam consciência de que ninguém gosta de receber ordens, sem ser tido nem achado para as decisões, que ninguém gosta de não ser escutado e compreendido.
E não faltam estudos que comprovam como esse respeito torna as pessoas mais colaborantes, mais empáticas e mais capazes de ir ao encontro dos “objectivos” do outro, até para que o outro também vá ao encontro dos seus.
Não acredito que as crianças estejam, em geral, a fazer mais bullying aos pais do que dantes, e também não acredito que os pais sejam tão tontos que se deixem vitimizar. Parece-me até que pensar assim é de uma condescendência insuportável. Os avós não precisam de salvar os filhos dos netos. Na grande maioria dos casos, os pais adoram viver com os seus filhos, mesmo com o cansaço, mesmo com o caos, mesmo com menos tempo para dois, mesmo com menos dinheiro. E, acredito, que tiram mais prazer da relação que têm com os filhos.
Se isto tem desvantagens? Claro que sim! Ganham-se umas competências e perdem-se outras, mas não se transformam as crianças em delinquentes ou pessoas mais egoístas ou mais incapazes, até porque têm sempre o exemplo dos pais – que afinal de contas foram criados pelos ditos avós! — e o exemplo dos maravilhosos avós!
Love,
Ana
Olá, filha
Quem me manda a mim provocar-te. Isto dos filhos pensarem pela própria cabeça dá muito trabalho. E, embora não tenha tanta certeza como tu de que não há pais vitimizados pelos filhos — e vice-versa —, concedo que puseste o dedo na ferida quando dizes que, tendencialmente, valorizamos mais o trabalho feito em “esforço”. Como se aquele que é cumprido com aparente facilidade e até com boa disposição não contasse tanto. Ou, mesmo nada.
É, com certeza, herança de uma educação que valoriza muito a “cruz” e o sacrifício, levando a que as pessoas tenham de se andar constantemente a lamentar da carga que levam sobre os ombros, numa tentativa de subir na consideração dos outros. Até a nível profissional, se sente (sentia?) isso mesmo: aqueles que se atrevem a dizer que se divertem a trabalhar, e que não se queixam do que têm para fazer, são um bocadinho desqualificados.
Mas o que mais me tocou na tua carta foi o teu grito do Ipiranga: “Os avós não têm de salvar os filhos, dos netos.” Vou afixar esta máxima, dentro de mim. Digo isto sem ponta de ironia. É que embora odiasse quando a tua avó vos dizia “Meninos, não cansem tanto a vossa mãe!”, quase que vos acusando de serem responsáveis pelo meu estado de exaustão (o de uma mãe que trabalha e tem três filhos, quando ela teve oito!), agora que sou avó dou por mim a fazer o mesmo.
Activamente, a tentar que os netos sintam o peso da culpa pelos pais não dormirem, por lhes terem de aturar as birras, por não poderem namorar sossegados, na esperança de que essa chamada de atenção os torne mais “fáceis”.
É horrível, eu sei, mas o nosso instinto de protecção em relação aos nossos filhos é muito forte. Infelizmente, no entanto, também o temos em relação aos nossos netos e quando sentimos que vocês, pais, não lhes estão a dar o tempo e a atenção que merecem, também vos fazemos uns sermões culpabilizantes. Pois é, sentimo-nos ensanduichados entre vocês.
Feito este mea culpa, talvez não entrássemos neste modo tão de 112, se os pais nos ligassem tanto para desabafar sobre o que corre mal — as birras, as insónias, as doenças —, como para nos contar as coisas boas. Se não o fizerem, enviesam-nos o olhar, dando-nos a sensação de esgotamento total, onde, afinal, só estava um momento de desânimo. E, já agora, podiam maquilhar as olheiras quando nos visitam!
Até amanhã,
Mummy
No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram