Na tormenta – Novos e velhos em procura do futuro
Não há velhice, há velhices. As pessoas mais velhas têm uma vasta experiência de gestão de riscos, os centenários são prova disso. Mas não estavam preparadas para a categorização que lhes molda a vida quando não podem prover à satisfação das necessidades essenciais.
A crise que vivemos, imprevisível na sua extensão, intensidade e profundidade, atingiu de forma disruptiva os sentimentos de segurança e confiança que permitem a organização do quotidiano de cada um e da própria sociedade.
A perceção dos limites do conhecimento na previsão e gestão da crise marca a incerteza e a insegurança dos tempos que vivemos. Sabemos ainda pouco sobre o vírus que põe em risco as nossas vidas e o que com elas fazemos.
Tempos também de perplexidade. A aceleração do tempo da era digital emerge em velocidade mais moderada. Voltar a tempos de segurança que articule o antes e o depois, face ao futuro, exige mais tempo. Mais tempo para construir o conhecimento que sustente de forma séria e coerente o que fazer agora. Mais tempo para integrar as aprendizagens da crise, mais tempo para construir o depois. Mais tempo quando a urgência do imediato o torna dificilmente suportável.
A tensão entre perceções “contraditórias” do tempo não deixará de conduzir ao questionamento de tantos dos nossos comportamentos em muito condicionados pela vertigem da aceleração do tempo. A crise é também tempo de interrogação, de exercício de mais autorreflexividade.
Sabemos que vivemos em sociedades de risco e que estes constituem limites à nossa tão desejada e proclamada autonomia. A consciência dos limites do ser autónomo resulta da aprendizagem de que dependemos cada vez mais uns dos outros. Segundo Beck (2001), a par do enraizamento de uma ideologia de individualização fundada sobre o princípio dos deveres de cada um face a si próprio (Elias, 1991), a gestão da exposição aos riscos depende sobretudo de outro, o que detém o saber. Ainda que viver no risco e na incerteza seja o grande risco da condição humana (Morin, 2004).
Autonomia e riscos da existência em sociedades de risco são elementos da análise compreensiva do envelhecimento do “eu” e dos outros, na sociedade em que se inserem. Sabemos que o envelhecimento acompanha os riscos do percurso de vida. A velhice é inelutavelmente o resultado da gestão desses riscos que cada um, como sujeito, que o diferencia dos outros, seguindo o pensamento de Morin, pode e sabe fazer ao longo da vida.
A crise que vivemos é, quase me atreveria a afirmar, um caso “limite” dos riscos que a todos afeta, mais novos e mais velhos, nas suas múltiplas interdependências, sedimento que estrutura trocas e laços sociais, indispensáveis à vida de cada um e de todos enquanto sociedade. Não podemos esquecê-lo quando falamos de distanciamento social.: físico, sim, mas exigindo “presença” através de todos os meios acessíveis em cada caso para garantir que os elos não se fragilizaram e muito menos se quebraram.
As pessoas com 70 e mais anos, consideradas um grupo de risco, constituem um grupo profundamente heterogéneo, seja em termos de qualificações, rendimentos, estado de saúde, habitat ou até situação socio-familiar. O que não é indiferente à exposição aos riscos nem à capacidade de gestão das situações de risco. Estamos face a várias gerações de pessoas mais velhas. Entre estas estão as que acederam ao longo da vida ativa a melhores condições de vida e com isso detêm um melhor passaporte para a velhice, as que só tardiamente puderam aceder aos direitos sociais garantidos para todos, as cujo percurso foi marcado pela crescente urbanização do território, as que ficaram num interior em desertificação, as que assistiram a maior dispersão dos núcleos mais jovens da família, as que vivem em contexto institucional.
Não há velhice, há velhices. As pessoas mais velhas têm uma vasta experiência de gestão de riscos, os centenários são prova disso. Mas não estavam preparadas para a categorização que lhes molda a vida quando não podem prover à satisfação das necessidades essenciais. A autonomia, como factor de diferenciação, ainda que associada a formas de proteção específica nos casos de maior défice e/ou incapacidade, potencia e desenvolve representações de envelhecer e velhice associadas a dependência e incapacidade. O que não é uma inevitabilidade. Inserem-se num contexto que desvaloriza o “não autónomo” e que pouco investe no desenvolvimento da autonomia potencial. O universo institucional que emerge nestes tempos de crise resulta deste ambiente de proteção pré-formatada, com as fragilidades e insuficiências que lhes estão associadas.
A crise faz emergir as nossas fragilidades, insuficiências, assimetrias, desigualdades e irracionalidades, mas é também reveladora do nosso capital de conhecimento, dos valores que nos mobilizam e das potencialidades de ser melhor e fazer melhor.
A centralidade das pessoas como sujeitos do desenvolvimento social e económico pode vir a ser um resultado positivo desta crise, esperemos que seja. Não há desenvolvimento sem pessoas. Não há desenvolvimento económico sustentável sem desenvolvimento humano. Este não é um subproduto do primeiro. Precisamos mudar, não há projeto de vida e de sociedade que não comporte a mudança. O que não deixará de ter impacto no entendimento do envelhecimento pela valorização das pessoas ao longo das diferentes etapas do percurso de vida e pela reavaliação serena e profunda das formas de proteção social que lhe estão associadas.
Um amigo e antigo colega de trabalho dizia-me há dias que tinha a sensação de estarmos a viver num filme de ficção científica. Eu acrescentaria que estamos no elenco e não conhecemos o guião. Ficção ou realismo puro e duro, esta é também a nossa hora. Para não nos definirmos como eu fui, mas como eu sou. Sabendo também, como diz Cornelius Castoriadis, que um ser, um indivíduo, uma sociedade não pode ser autónoma se não aceitar a mortalidade.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico