Esta crónica é toda para a Filipa. Para todas as Filipas
A Filipa é médica e optou por só voltar a ver os filhos quando tudo isto passar. Não foi uma opção fácil, mas nenhum caminho era bom.
A Filipa era uma das minhas melhores amigas na escola primária, em Guimarães. Depois das aulas, passávamos as tardes a brincar. É uma pena, mas não tenho comigo em Lisboa uma fotografia nossa, ainda no infantário, as duas mascaradas no Carnaval, eu de Capuchinho Vermelho, ela de enfermeira, ou de médica, talvez fosse de enfermeira, tinha uma capa azul e, se a memória não me falha, uma malinha de primeiros socorros na mão. Engraçado pensar nisto agora, eu escrevo livros infantis, ela tornou-se anestesiologista. Sempre foi inteligente, boa aluna, esperta.
Já não somos as melhores amigas há muitos anos, já não vivemos na mesma cidade. Ela vive em Braga, eu em Lisboa, ela trabalha num hospital, é uma das profissionais do Serviço Nacional de Saúde. De vez em quando, muito de vez em quando, lá nos vemos. Temos grupos de amigos no WhatsApp, vamos sabendo uma da outra. Ela casou-se com um anestesiologista, tem três filhos. Um de sete anos, outro de cinco e uma menina de dois.
Calhou, nestes dias estranhos, falarmos por telefone. Perguntei-lhe como estava, tentei perceber como fazia com os miúdos, o medo disto tudo, a confusão destes tempos. Ela não se pode fechar em casa, ela tem de ir. Quando esta crónica for publicada, a Filipa e o Tiago já tomaram a difícil decisão: deixar os filhos com os avós e dedicarem-se ao trabalho. Muito provavelmente, a Filipa só vai voltar a ver os filhos quando tudo isto passar.
Havia outras hipóteses, mas nenhuma era boa. Dizia-me a Filipa: “Nós decidimos assim. Teve de ser uma decisão rápida. A mais pequena vai para casa dos meus pais, os mais velhos para casa da minha sogra.” Foram numa altura em que o casal, os dois médicos, sabia não estar infectado. Se a decisão fosse protelada, essa margem de segurança desvanecer-se-ia. A mudança aconteceu, por isso, no domingo passado ao fim da tarde.
Depois desse passo, passarão 15 dias ou um mês até ir buscar a miudagem. Acontecerá “quando esta fase difícil acabar”, explicou-me. Ela não sabe bem quando, depende de como tudo isto evoluir. “Vou ter muitas saudades, claro que vou. Se quiseres, liga-me daqui a uma semana ou duas e eu digo-te como está a ser.”
Eu e a Filipa já não somos as melhores amigas há muitos anos, mas eu sei o que a move: o amor aos filhos, o amor à família, mas também, porque ela mo disse, um amor ao Sistema Nacional de Saúde. Um amor e, sobretudo neste momento, um tem de ser.
Bem sei que os profissionais de saúde não querem palmadas nas costas, mas condições. Não querem ser heróis, mas fazer bem o que tem de ser feito. Ainda assim, e porque aquela amizade de infância talvez mo permita, arrisco: esta crónica é toda para a Filipa. Para todas as Filipas, médicos, enfermeiros e outros profissionais que trabalham na área da saúde.
Não tenho comigo em Lisboa a fotografia daquele Carnaval longínquo. Todos encostados à parede numa das salas do nosso infantário, índios, cowboys e princesas. A minha amiga estava muito séria na sua fatiota. Muito compenetrada nos seus cinco anos. Um dia, quando tudo isto passar, ainda vos mostro esse retrato.