Pais separados: juristas e especialistas apelam a “bom senso” nesta “situação verdadeiramente excepcional”
O diploma do estado de emergência tem em conta as deslocações para cumprir as responsabilidades parentais, mas os autos de incumprimento sucedem-se. Como decidir o vaivém das crianças?
Com um diagnóstico de cancro desde Novembro e depois de seis semanas de violentas sessões de quimio e radioterapia, Diana, de 40 anos, sabe que esta não é altura para se arriscar a estar exposta a qualquer vírus — muito menos a um de elevado contágio e taxa de letalidade alta para pessoas com o sistema imunodeprimido como é o seu caso. Por isso, com guarda partilhada com o ex-marido, decidiu que os dois filhos, após a próxima troca, não voltarão a sua casa — pelo menos enquanto a pandemia não abrandar.
“O pai tem uma profissão que não lhe permite deixar de trabalhar e, por mais cuidados que haja, há sempre um risco de exposição.” Além disso, Diana estima que, mesmo mais expostos à possibilidade de contraírem o novo coronavírus (reduzida, dado os cuidados que confia que o pai dos seus filhos terá), “os miúdos terão melhores condições com o pai, a duas ruas de distância, onde podem usufruir de um pequeno jardim”.
“Não é uma decisão fácil” e foi feita com muitas lágrimas de todos. No entanto, para Diana, e também para o pai dos seus filhos, não há nenhuma dúvida: “Pretendo andar por aqui muitos mais anos; não tarda, estamos todos juntos.”
No caso de guardas partilhadas ou de um regime de visitas acordados por ambos os progenitores e regulados por tribunal, a decisão de alterar o que está estipulado dependerá da vontade de ambos os progenitores, explica Ângela Vieira, do escritório José Pedro Aguiar-Branco (JPAB), especializada em direito da família. “Estamos perante uma situação verdadeiramente excepcional. Nenhum acordo de regulação das responsabilidades parentais ou decisão judicial consegue dar resposta à imprevisibilidade de todas as situações que podem surgir porque o que se regula é precisamente a vida humana”, acrescenta.
No entanto, o diploma do estado de emergência, decretado a 18 de Março pelo Presidente da República e redigido pelo Conselho de Ministros, prevê entre as excepções de restrição de movimentos as “deslocações por outras razões familiares imperativas, designadamente o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo tribunal competente”.
“Uma alínea de excepção de conceito dúbio”, considera Nuno Melo, juiz do Tribunal de Família e Menores do Porto. Em declarações ao PÚBLICO, mas ressalvando que os seus comentários expressam apenas a sua opinião, não tendo ainda havido (até à data da nossa conversa, no início desta semana) nenhuma reunião do colectivo de juízes no sentido de encontrar uma posição concertada, o magistrado chama a atenção para o facto de a excepção do diploma não ser específica nem quanto à residência nem ao regime de visitas, referindo-se antes à “partilha de responsabilidades parentais”, sendo que estas cabem, em qualquer regulação, a ambos os progenitores, independentemente da forma encontrada de contactos.
Já o constitucionalista Tiago Duarte ressalva que a mesma alínea “faz sentido”, uma vez que permite justificar a razão de se ir na rua com uma criança, mas refere que a mesma “não implica que os pais não possam alterar o que está acordado”.
Incumprimentos sucedem-se
Enquanto a lei tenta encontrar um enquadramento para uma situação sem referências passadas, as queixas de incumprimento sucedem-se — algo que foi ainda mais evidente no dia 19 de Março, em que se assinalava o Dia do Pai.
Ao PÚBLICO, o porta-voz da Polícia de Segurança Pública, o intendente Nuno Carocha, diz que os agentes estão a “apelar ao bom senso de todos”, deixando a mensagem de que, mesmo para levantar um auto de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, não há necessidade de se dirigir a uma esquadra, indicando o portal da Queixa Electrónica. “Todas as queixas são encaminhadas tendo em conta a esquadra de residência”, reforça o responsável, apelando a que todos minimizem as suas deslocações.
No entanto, o portal em causa não tem nenhum formulário para o caso específico de incumprimento. “Estamos a aconselhar os nossos clientes a irem pelo separador da violência doméstica e depois de aí estarem esclarecerem de que se trata de incumprimento da regulação e não de violência doméstica”, explica a advogada Ana Catarina Fialho, da delegação de Lisboa da JPAB, ao mesmo tempo que sublinha que, neste caso específico, “há que apelar ao bom senso de todos”.
Para o juiz Nuno Melo, o incumprimento de uma regulação terá de ser analisado “caso a caso”, tendo em conta que pode “haver uma situação que o justifique”, que estamos a lidar com “uma questão única de saúde pública”, mas também que poderá, noutros casos, haver “um aproveitamento”.
“O ideal é que os pais, incluindo os que têm problemas de comunicação, aproveitem o momento para pôr o superior interesse da criança à frente de tudo”, diz o especialista, admitindo que, sendo um caso de saúde pública, ter-se-á de equacionar também o interesse e o bem-estar das pessoas que compõem a rede de suporte à criança: se coabita com pessoas que se inserem nos grupos de risco, se as habitações têm condições para a manutenção de algum distanciamento caso seja necessário, etc..
O vaivém das crianças
“Se o pai e a mãe tiverem o mesmo cuidado, a criança pode transitar entre uma casa e outra sem nenhum problema”, avalia o pediatra João Bismark, considerando existirem apenas razões para interromper o regime acordado “se houver um elevado risco de qualquer dos pais estar ou vir a ser infectado”. “Eu acho que as famílias vão ter de usar o bom senso” e decidir “de acordo com o que estão a viver”.
Uma opinião corroborada pelo pneumologista Filipe Froes, que defende que, se se obedecerem a algumas regras, a transição entre casas será fácil e sem riscos. “Tem de haver um compromisso [de ambos os pais] de não expor, directa ou indirectamente, os filhos ao risco.” No entanto, considerando que a transmissão é feita, sobretudo, no período sintomático, “deve-se aplicar a mesma regra que existe para com qualquer outra pessoa com sintomas: distanciamento social”. Isto, diz o especialista, pressupõe que ambos os progenitores dêem conta um ao outro da existência de qualquer suspeita de sintoma — seu ou de alguém do seu círculo mais próximo —, seja durante a permanência da criança ou após a troca.
Para a jornalista Rita Marrafa de Carvalho a solução da partilha da residência dos seus dois filhos acabou por ir ao encontro da situação que a RTP encontrou para os seus profissionais: rotatividade de 15 dias, com os funcionários “de folgas” a cumprir auto-isolamento. “Como eu e o pai dos meus filhos trabalhamos para o mesmo sítio, acabámos por acordar uma partilha que se coaduna à situação.”
Assim, Rita ficou com os primeiros 15 dias e ficou em casa a partir de dia 13 de Março; agora, o pai assume as duas semanas que se seguem. “No Dia do Pai, foram à janela atirar os desenhos que tinham feito”, conta. Esta mudança, porém, pressupõe mais cuidados do que os habituais. “Há máscaras para os miúdos, mas o mais importante é que decidimos fazer uma desinfecção às nossas casas antes de eles entrarem”, explica, estando certa de que o pai terá todos os cuidados para que o contágio directo não seja um problema. “Estamos relativamente confortáveis em relação a eles [filhos], tendo em conta o efeito deste vírus nas crianças; preocupa-nos mais o avô, a quem ele [o ex-companheiro] tem de prestar algum apoio, e os vários pontos de ligação dos miúdos”, remata.
Fomentar a proximidade
Mesmo num contexto em que se torne imperativo o afastamento físico de um dos progenitores, Ângela Vieira alerta para a necessidade de promover “a relação de proximidade com o outro progenitor (…) através de contactos telefónicos mais regulares (inclusive videochamada)”, indicando ainda existir a “possibilidade de os pais chegarem a um acordo quanto a uma compensação de dias de convívio após este período”.
Os casos excepcionais, em que o afastamento pode ser necessário, são, segundo a jurista, vários: “Se um dos pais tiver recentemente feito alguma viagem a algum dos países particularmente afectado por esta pandemia; se não conseguir exercer a sua actividade a partir do domicílio, o que o coloca numa situação de maior exposição ao perigo de contaminação; se tiver contacto permanente com pessoas mais vulneráveis; ou então, por sua vez, se um deles tiver melhores condições, designadamente laborais, para acompanhar os filhos nesta fase.”
Resumindo, diz Ângela Vieira, “deverá imperar o bom senso entre os pais, chegando-se a um entendimento quanto àquele que tem mais e melhores condições para ficar com as crianças neste período”.
Em caso de esse entendimento não ser possível e se uma das partes decidir entrar em incumprimento, o mesmo “constitui uma instância incidental destinada à verificação de uma situação de incumprimento culposo/censurável de obrigações decorrentes do regime de responsabilidades parentais estabelecido.” Ou, seja, explica, “caberá aos tribunais, no contexto apurado, decidir se, naquele caso em concreto, é possível formular um juízo de censura relativo ao comportamento do progenitor que recuse a entrega, decidindo se o progenitor em causa incumpriu (ou não) voluntariamente o regime”.