Sonhava com ócio, mas está aborrecido? Schopenhauer explica

As queixas de que o ócio leva ao aborrecimento são milenares. A proposta de um filósofo para enfrentar o problema é crua, mas põe as angústias da quarentena no lugar.

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Pus-me a ler um ensaio sobre o ócio no dia em que parar, por um minuto que seja, passou a ser um luxo das arábias. Chovem sugestões para combater o “aborrecimento” criado pela quarentena anti-covid-19 e eu até percebo — há pessoas que vivem sozinhas.

Mas para quem tem teletrabalho e telescola, mais o bicho “toda a família em casa” — todos juntos, todas as 24h, todos os dias da semana — as propostas para “ocupar o tempo livre” parecem vindas de Marte.

No ioga, forçamos o corpo a fazer movimentos simultâneos em direcções opostas — ao mesmo tempo que esticamos os braços para cima, puxamos os ombros para baixo. Ler sobre ócio nesta primeira semana de quarentena foi um exercício parecido.

A primeira frase que li em Idleness – A Philosophical Essay, de Brian O’Connor (Princeton University Press, 2018) foi sobre a nossa incapacidade para viver bem quando não temos nada para fazer. Por que é que isso acontece? Porque a nossa tarefa principal na vida é evitar o ócio, responde o professor de Filosofia da University College Dublin. E, assim, sentimos-nos aborrecidos mal paramos — ou pelo menos esse é o pensamento dominante, escreve O’Connor. “A experiência diz-nos que a preguiça sem um objectivo torna-se inquietante. Kant tenta explicar o aspecto enigmático do nosso desejo por um estilo de vida que é, afinal, uma fonte de desconforto.” Um “sentimento muito contrário”, diz Kant, que surge por causa da nossa “inclinação natural” para o que é fácil. Podemos dizer o contrário, mas não é fácil estar parado.

Em teoria, todos queremos não ter nada para fazer, mas quando o ócio se torna real, sentimos que vamos endoidecer e “acabamos por encontrar formas de ocupar o tempo de modo a não nos aborrecermos”, escreve O’Connor. Resultado? “Enganamos” a nossa falaciosa “inclinação” para o “descanso inactivo” (palavras de Kant) e pomo-nos a arrumar armários e a limpar a prateleira das especiarias. “Dizemos a nós próprios que o que mais queremos é ócio, mas tendemos a fazer tarefas — em regra, triviais — que não estão em linha com o ideal de ócio”, escreve O’Connor.

A experiência de nos sentirmos aborrecidos quando estamos sem grandes actividades é referida com tanta frequência, e há tantos séculos, que parece ser “um facto intemporal da psicologia humana”, escreve o professor.

Será?

O’Connor começa por dizer que associar aborrecimento a ócio não é uma linha directa. Aborrecimento é um “estado emocional”, ócio é uma “forma de comportamento”. O primeiro não é forçosamente uma consequência do segundo.

Algumas pessoas, escreve O’Connor no seu ensaio, são “perfeitamente capazes” de se entregarem ao ócio sem se preocuparem com o aborrecimento. “Não é que as queixas de que o ócio leva ao aborrecimento sejam falsas.” Essa queixa “é uma experiência comum”.

Sonhava com ócio, mas está aborrecido e ainda estamos no início da quarentena? Kant e Schopenhauer explicam. Não é a verdade. É apenas parte da verdade destes filósofos e apenas uma porção mínima da reflexão de O'Connor.

Há séculos que os filósofos pensam sobre o aborrecimento. Há o “aborrecimento indiferente”, o “aborrecimento calibrador”, o “aborrecimento pesquisador”, o “aborrecimento reactivo”, o “aborrecimento apático”, o “aborrecimento situacional”, o “aborrecimento da saciedade”, o “aborrecimento existencial”, o “aborrecimento criativo”, e outros.

O “aborrecimento circunstancial” é o que mais se aplica à quarentena para fugir ao novo coronavírus. É o que ocorre, escreve O’Connor, “quando somos privados da oportunidade de fazer o que nos interessa e, ao mesmo tempo, somos forçados a fazer uma coisa que não nos dá qualquer satisfação”. Peter Toohey fala do “tédio do aborrecimento” quando há “longa duração”, “previsibilidade” e “confinamento”. A descrição é-lhe familiar?

E Schopenhauer, o que propõe? Para estes dias, o mais útil é — talvez — o seu pessimismo e crueza. Diz o filósofo que o aborrecimento não deve ser visto como uma oportunidade para crescer em autoconhecimento, uma vez que o aborrecimento é simplesmente a experiência imediata do triste vazio da nossa existência”. Julgava que fazia coisas para ser útil ao mundo? Nope. Nós agimos, diz Schopenhauer, para escapar ao aborrecimento e nada mais.

Além de a vida ser essencialmente vazia, para Schopenhauer a vida é sobretudo sofrimento, escreve o autor de Idleness. “Sofrer não é atribuível à má sorte e às forças históricas. A causa dos modos pelos quais nós, humanos, sofremos é a nossa natureza intrínseca.” Isso significa que “devemos considerar o sofrimento como uma condição natural” e que os “períodos de contentamento” são sempre fugazes. Escreve O’Connor sobre a visão de Schopenhauer da nossa existência: “A verdade é que a vida humana não é essencialmente feliz, significativa ou tranquila.”

Uso este truque há muitos anos: quando tenho um problema, penso numa tragédia da Humanidade e o problema parece logo pequeno. Ler Schopenhauer tem um efeito igual para as angústias da quarentena.

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