Covid-19 e as novas oportunidades para o arrendamento em Lisboa

Não é novidade que, de há cinco anos a esta parte, Lisboa vive uma crise de habitação sem precedentes, com a escalada galopante de valores praticados, quer no arrendamento, quer na aquisição de habitação própria, que se revelam crescentemente proibitivos para a esmagadora maioria da população portuguesa.

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A expansão recente da pandemia de covid-19 tem suscitado alterações no regime de ocupação de muitas casas no centro histórico de Lisboa, antevendo um arrefecimento na febre imobiliária da cidade e cativando o potencial interesse dos proprietários de alojamento local (AL) em canalizar parte das duas dezenas de milhar de alojamentos de uso turístico existentes no município, agora vazios, para o mercado de arrendamento de longa duração.

Não é novidade que, de há cinco anos a esta parte, Lisboa vive uma crise de habitação sem precedentes, com a escalada galopante de valores praticados, quer no arrendamento quer na aquisição de habitação própria, que se revelam crescentemente proibitivos para a esmagadora maioria da população portuguesa. A conjuntura explicativa não se resume à turistificação, mas prende-se com um conjunto mais lato e estrutural que não nos interessa aqui explorar.

À semelhança da política de habitação e de arrendamento acessível que tem vindo a desenvolver, a Câmara Municipal de Lisboa (CML), como agente de produção e gestão do espaço urbano e de ordenamento do território municipal, e face ao dever que lhe assiste nesta matéria, lançou no passado dia 25 de Março uma série de medidas de apoio às famílias, às empresas e ao emprego, passando muitas delas por benefícios e isenções aos arrendatários municipais.

Face ao estado de emergência vigente e ao plano nacional de contingência da covid-19, e como “não se pode fazer quarentena sem casa”, a CML, pressionada por diversos movimentos sociais e associações de defesa do direito à habitação, suspendeu os despejos que estava a levar a cabo em fogos de alguns bairros municipais que estavam ocupados ilegalmente. Suspende também o pagamento das rendas em todos os fogos municipais até ao fim de Junho deste ano e permite que a liquidação das renda se faça por ano e meio sem penalizações, sendo que, a qualquer momento, as famílias poderão solicitar a reavaliação do valor da renda que pagam, em virtude de eventual desemprego dos seus membros ou quebra súbita de rendimentos.

Até ao mesmo limite temporal, esta suspensão estende-se também ao pagamento de rendas por todas as instituições de âmbito social, cultural, desportivo e recreativo, bem como espaços comerciais encerrados, ambos instalados em propriedade municipal.

Perante a grave crise que se vive no mercado de arrendamento de Lisboa, e aproveitando as isenções fiscais no Orçamento de Estado 2020, a CML já tinha em vista lançar o Programa Renda Segura (PRS), visando arrendar casas a proprietários privados (de alojamento local, imóveis desocupados ou prédios livres) para depois as subarrendar a preços acessíveis através do seu Programa Renda Acessível. Com o objectivo até ao fim deste ano de abarcar cerca de um milhar de casas, o papel da autarquia será o de subsidiar a diferença entre a renda que pagar pelo imóvel — em contratos de no mínimo cinco anos — e aquela que, depois, vai cobrar ao inquilino, sendo que o valor máximo que a pessoa ou o agregado paga pela renda nunca poderá ultrapassar um terço do seu salário líquido.

Prosseguindo uma narrativa de arrendamento acessível, o PRS, que se encontra ainda em fase de discussão e aprovação, apresenta, de facto, considerandos positivos. Opta por um preço travão, com a fixação de valores máximos de renda de acordo com uma tipologia, que é, em boa verdade, significativamente abaixo dos valores conhecidos de oferta no mercado de arrendamento para o conjunto das freguesias de Lisboa. Apresenta também uma possibilidade de captação de propriedades devolutas ou outras disponíveis no mercado livre para compra e venda para o mercado de habitação acessível.

Estes aspectos do PRS ganham novo destaque no actual contexto de crise pandémica. Inicialmente previsto para, no caso de se atingir uma situação de saturação do mercado de AL, ser uma oportunidade de desviar propriedades afectas ao AL para habitação acessível, o PRS alcança agora nova funcionalidade. Por exemplo, foi já criada uma plataforma que regista centenas de alojamentos (anteriores AL), doravante disponíveis para reserva de apartamentos e quartos para profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares, pessoal técnico e administrativo) que, sobreexpostos ao coronavírus, se recusam a voltar a casa, tanto pelo receio e risco de poderem contagiar os seus familiares, como por estarem deslocados do seu local de residência. Uma iniciativa que tem o patrocínio da Associação de Alojamento Local em Portugal (ALEP) e do Turismo de Portugal. 

Turistificação
Trata-se também de uma resposta à difícil situação pela qual passam muitos pequenos proprietários de AL, confrontados com o cancelamento massivo de estadias e congelamento de novas reservas devido ao estancar da procura e dos fluxos turísticos. Uma situação sem prazo para retomar à normalidade e que ameaça colapsar todo um sector de arrendamento de curta duração que cresceu de forma massificada, muito rapidamente e sem o planeamento devido.

Esta foi a condição última para o acentuar da turistificação do centro da cidade e da perigosa hiperespecialização da sua economia e sociedade, que para além de esvaziar a cidade de gente e descaracterizar a sua identidade e memória, tornou o território mais vulnerável e menos resiliente a eventos e fenómenos que configuram ameaça externa à sustentabilidade económica, social e ambiental (ex. atentados terroristas, catástrofes naturais, instabilidade política, conflitos e epidemias).

Sobretudo perante o actual contexto de urgência imposto pela crise de habitação e pelos sucessivos anos de contínuos despejos que agravam a sangria demográfica da cidade e as condições de vulnerabilidade residencial de muitos grupos sociais (idosos, estudantes, imigrantes, sem abrigo), cujas precárias condições de habitabilidade dificultam o direito ao isolamento e à quarentena em período de covid-19, bem como pela situação de crise vivida no sector do AL, o PRS pode representar aqui uma resposta ágil e flexível, quer a situações de emergência habitacional vividas em Lisboa, quer mobilizando o excedente de stock de propriedades em AL que podem agora reconverter-se em fogos com função de arrendamento permanente.

O curioso de tudo isto é como o tsunami turístico da cidade, associado à monofuncionalidade e à hiperespecialização do tecido económico e social do seu centro histórico, com todas as suas externalidades negativas, na verdade, pode abrir caminho para uma nova oportunidade de resiliência da urbe face à ameaça externa do novo tsunami social, económico e financeiro que se avizinha com a propagação da covid-19.

Essa é afinal a fórmula de sucesso do “capitalismo de desastre”, mobilizar todos os esforços públicos e privados para capitalizar da melhor forma possível a destruição criativa dos territórios e das paisagens acarretada pelos riscos ou catástrofes naturais, em que poucos beneficiam muito e muitos tão pouco ou nada.

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