Coronavírus, urina de vaca e propaganda de Hindutva
Num país onde o serviço público de saúde é miserável e o bem-estar social algo de elusivo, a covid-19 pode vir a representar uma catástrofe para milhões de indianos pobres.
O coronavírus é um desastre artificial – uma tragédia de proporções épicas. É escusado dizer que este infeliz acontecimento causou, globalmente, danos imensos à economia e a vidas humanas. No entanto, para o primeiro-ministro indiana Narendra Modi, líder do partido político hindu-nacionalista Bhartiya Janta, este é um momento oportuno para a promoção da pseudociência da Hindutva (uma religião política hindu) e para o culto à figura de Modi – tudo feito em nome da prevenção e tratamento da covid-19.
No dia 14 de março, um grupo religioso hindu organizou uma festa para o consumo de urina de vaca, acreditando que ela repele o vírus. Para o hinduísmo, a vaca é um animal sagrado, e alguns seguidores bebem a sua urina pois acreditam nas suas propriedades medicinais. No passado, alguns políticos ligados ao partido nacionalista hindu defenderam o uso de urina de vaca para o tratamento e cura do cancro. Suman Haripriya, uma membra do parlamento, pertencente ao partido do governo (BJP), também sugeriu o uso de urina de vaca contra o coronavírus. E ela não é o único político do BJP que acredita nisso. O ministro-chefe de Uttar Pradesh, Yogi Adityanath, sugeriu que a covid-19 e outras doenças poderiam ser curadas com a ajuda do yoga. Uma grande parte da população indiana pode vir a acreditar nessas informações erróneas, devido à confiança que depositam no Governo. Por isso, a desinformação com fonte governamental pode gerar consequências muito perigosas, já que parte de pessoas de grande influência.
É interessante notar que logo estarão disponíveis na Amazon indiana diversos produtos preparados a partir da urina e do esterco da vaca – um projecto que conta com o apoio da organização hindu militante RSS.
Num outro caso, Chakrapani Maharaj, presidente da organização Akhil Bharti Hindu Mahasabha (Assembleia Indiana), disse no Twitter que “o coronavírus é uma punição pela morte e consumo de animais. As pessoas veriam beber urina de vaca e rebocar suas casas com esterco, e devem conduzir rituais havan (oferenda de rezas diante do fogo) regularmente.”
Esse tipo de desinformação, com teores de propaganda nacionalista-hindu, não só afectará os 313 milhões de indianos iliteratos, não afectará apenas aqueles que mantêm uma fé cega na religião hindu, como também arrisca potenciar a propagação da covid-19 entre as 1,37 mil milhões de pessoas que compõe a população da Índia. Num país onde o serviço público de saúde é miserável e o bem-estar social algo de elusivo, a covid-19 pode vir a representar uma catástrofe para milhões de indianos pobres.
Especialistas já afirmaram repetidamente que a urina de vaca não cura doenças como o cancro e que não há evidências científicas de que previna o coronavírus. Uma nova reportagem da BBC cita Shailendra Saxena, da Sociedade Indiana de Virologia: “Não há evidência médica que demonstre que a urina de vaca possua propriedades antivirais. Além disso, usar esterco de vaca pode ser contraproducente, visto que as fezes bovinas podem conter coronavírus.”
O ministro da Saúde indiano afirmou que os casos de coronavírus subiram para 415. No entanto, profissionais da medicina estão preocupados com as transmissões que não podem ser contabilizadas devido à ausência de testes generalizados. Na verdade, a propaganda de Narendra Modi e das lideranças do seu Governo é a razão para o número diminuto de infecções de covid-19 conhecidas no país. No momento em que a segunda onda da covid-19 começou, a máquina de propaganda engajou-se no seu trabalho gabando-se de como Modi liderava não apenas a Índia, como também toda a região do Sul da Ásia, apontando ao facto de que o primeiro-ministro australiano o elogiou por ter sugerido a próxima reunião do G-20.
A mais preocupante das estatísticas é a de que um terço da totalidade dos testes feitos na Índia foram conduzidos apenas em Kerala, um estado que representa apenas 2,5% da população indiana. Especialistas têm sérias suspeitas de que haja milhares de casos não detectados, conjecturando se a Índia se tem preocupado suficientemente com a extensão das pessoas testadas, visto o crescimento exponencial de casos em nações com um sistema nacional de saúde muito mais forte.
Mas a propaganda não permite que tais questões sejam levantadas no meio da crise. Um ideólogo do BJP, Swapan Dasgupta, afirmou que a demanda por mais testes “surra a Índia”. O principal epidemiologista do Conselho Indiano de Pesquisa Médica (ICMR) admitiu que a Índia não tem testado mais porque isso significaria um aumento dos casos, como também um aumento da demanda por instalações de isolamento.
Especialistas temem que a desinformação dos oficiais do Governo, que propagandeiam os benefícios de derivados bovinos e outros remédios homeopáticos como forma de prevenção ao vírus, pesam nos desafios futuros que o país enfrentará devido à pandemia.
Analistas também afirmam que o decreto de restrições sociais, como as usadas na Itália e China, seria impossível no caso de diversas regiões rurais e superpovoadas da Índia. Dados de 2011 indicam que um em cada seis indianos urbanos vive em condições de moradia precária. Aqueles que vivem na pobreza seriam as principais vítimas na sequência de uma pandemia como esta, tendo em conta que o sistema de saúde indiano é largamente privado e oneroso, e o que resta do sistema público encontra-se sobrecarregado e, muitas vezes, precário.
É de notar que a Índia é um dos países com o mais fraco sistema de saúde no mundo, com indicadores abismais neste domínio. A Índia gasta apenas 1,28% do seu PIB em saúde pública. As pessoas do Bangladesh, Nepal e mesmo Libéria – um país com um PIB per capita equivalente a 1/7 da Índia – são mais saudáveis que os indianos e indianas. A Índia representa 24% dos malnutridos mundiais, mortes devido à fome ainda são comuns e o acesso à saúde primária é ainda limitado. Devido a isto, a Índia não deve permitir que a sua liderança brinque com a sua vida. É mais do que certo que acreditar nas propagandas do governo, em tempos de uma crise como esta, é extremamente perigoso.