A batalha das nossas vidas – do medo à esperança
Se algo ficou claro com esta crise é que o SNS é o verdadeiro seguro de saúde dos portugueses. Um “sistema de saúde” em que os privados são “parte da rede” é ficção.
Juntos podemos vencer esta batalha e minimizar os efeitos da epidemia. Mas não podemos abdicar da critica às medidas hesitantes que foram tomadas. Temos de assumir o risco de propor as medidas que se nos afiguram hoje como essenciais – os decisores políticos devem ter a coragem para as executar.
Cenários e projecções
O “achatar da curva”, isto é, prolongar a doença no tempo reduzindo o pico, de que tanto se fala, não resolve o problema da covid-19. Para efeitos de análise preparámos quatro cenários. Se Portugal não fizesse nada teríamos um pico de dois milhões de infectados a 13 de Maio. Se “achatarmos a curva" de forma tímida, teríamos o pico dentro de seis meses, o valor de infectados no pior dia seria da ordem dos 600 mil doentes, com uma imunidade de grupo a raiar os 20%, o que significa que esta parte da população não teria a doença. Os doentes críticos atingiriam os 60.000 (porque o seu tratamento é muito longo).
No terceiro cenário, conseguimos alongar o pico para daqui a um ano ou um ano e meio sem liquidar a doença. Teríamos assim um pico de 100.000 casos, a imunidade de grupo rondaria os 40%, o stress para o SNS seria relativamente controlável, mas elevado, duraria mais de dez meses. Haveria tempo para ter 5000 ventiladores extra a ajudar a salvar vidas, talvez desse tempo para a vacina. É uma hipótese que, neste momento, com as medidas tomadas, parece possível. Mas também é uma solução calamitosa, com alguns milhares de mortos. O problema deste cenário é a situação social e económica que seria uma catástrofe muito alongada para o país. O quarto cenário, o que defendemos, é conseguir, com medidas muito severas de restrição, dominar a doença dentro de 40 a 50 dias.
Ainda há poucos casos em Portugal, menos que no resto da Europa face ao total da população. O problema do último cenário reside no facto de o vírus poder ter uma nova propagação incontrolável numa população que não ficaria imunizada. Ficaríamos em suspenso pelo tempo que durasse a chegada da vacina. Se conseguíssemos, teríamos de manter um controlo fronteiriço muito apertado durante muito tempo e fechar já os aeroportos – há países ainda longe da crise que terão picos muito depois. Outros países conseguirão alongar o pico, mantendo o vírus em circulação meses ou mesmo anos (este vai ter mutações e nada nos garante que a imunidade não se vai perder dentro de seis a sete meses...). Mas neste cenário morreriam muito menos pessoas; se a quarentena geral fosse feita hoje, morreriam menos de 2000 pessoas em Portugal – menos do que numa gripe sazonal. Com as compras de ventiladores a serem feitas atempadamente, neste preciso momento, toda a gente teria tratamento adequado e o pessoal de saúde teria uma sobrecarga enorme mas possível de gerir. Oriol Mitjà, que lidera uma investigação para parar a transmissão do novo coronavírus, na Catalunha, escreveu no El País que considera que o avanço da epidemia seria evitável e acusa as autoridades espanholas de negligência – assim, defende, há que parar o trabalho todo que não seja essencial, e os transportes públicos. O Governo de Espanha acaba de anunciar um gabinete de crise para analisar os erros que não se podem ocultar.
Prognósticos e soluções
Estamos conscientes de que a vida dos portugueses depende de um SNS forte com capacidade de se reorganizar para enfrentar este combate. É preciso ter capacidade de decisão, enfrentando “lobbies” com coragem: os profissionais de saúde devem ser organizados como exército de primeira linha porque detêm o saber-fazer para salvar as nossas vidas. Necessitam de protecção total, tanto na sua actividade como na possibilidade de fazerem quarentena quando expostos a doentes infectados e passarem à retaguarda, por videoconferência. É necessário dar formação rápida a elementos novos, com pouca experiência em trabalho de Cuidados Intensivos, de modo a poder substituir os elementos existentes e evitar demasiadas horas extraordinárias com consequente cansaço – tudo isto deve ser acompanhado de estímulos a estas profissões: declaração oficial da profissão de risco e desgaste rápido e discussão futura de reintrodução de carreiras médicas e de enfermagem, salários mais justos e estímulos à exclusividade.
À semelhança da Espanha, defendemos a requisição de hospitais e laboratórios privados, todos devem ser colocados sob o comando único do Ministério da Saúde, devem impedir-se negócios público-privados, escandalosos em tempos de crise pandémica. E, como na Coreia do Sul, os testes devem estender-se ao máximo de pessoas possíveis, para ajudar a conter a epidemia. O estudo dos doentes urgentes e os infectados pela covid-19 devem ter meios complementares de diagnóstico reservados e dedicados. Não devemos esquecer o pessoal administrativo e auxiliar de acção médica, fundamental para agilização dos processos. É decisiva a aquisição de material médico de utilização de Cuidados Intensivos, nomeadamente ventiladores – calculamos serem necessários 3000 ventiladores imediatamente e ter a possibilidade de comprar mais 2000 muito rapidamente, se os números se descontrolarem. Isso teria um custo entre 90 a 200 milhões de euros, pouco comparado com a vida humana. O INEM é um meio de transporte importante, vital, onde não tem havido investimento. É preciso recolocar de pé este serviço estratégico para o país.
Lembramos que o desinvestimento no SNS foi feito, supostamente, para pagar a dívida pública, e isso incluiu salvar bancos privados falidos que, depois de negócios imobiliários na sua construção, estiveram na estrutura accionista dos hospitais privados – os mesmos que hoje não querem tratar os doentes de covid-19, com o argumento de que os seguros não cobrem pandemias. Se algo ficou claro com esta crise é que o SNS é o verdadeiro seguro de saúde dos portugueses. Um “sistema de saúde” em que os privados são “parte da rede” é ficção. Seria muito reprovável deixar o sector privado usar esta crise para se salvar da falência – o estado de emergência deverá servir para colocar este sector ao serviço de todos.
O vírus chegou à Europa em fim de Fevereiro depois de dois meses de surto na China, mas o Governo não sabia até dia 16 de Março quantos ventiladores ao certo havia no país, o que prova a falta de preparação que deve ser corrigida. Todos os hospitais têm falta de meios de protecção para os profissionais do SNS, muitos deles já infectados.
Olhemos também para o caso da Dinamarca, que fechou fronteiras, proibiu bares e restaurantes e permite que duas pessoas sob o mesmo tecto saiam para passear. Foi o primeiro país europeu a fazer decrescer a taxa de crescimento e apoia os trabalhadores em dificuldades.
Mandar os trabalhadores para casa com 66% do salário é uma medida insuficiente: 25% de toda a força de trabalho em Portugal aufere o salário mínimo. E mais de 50% – segundo o INE – fazem horas extraordinárias, isto é, precisam de trabalhar muito mais do que o salário base para conseguir assumir os seus compromissos financeiros. Por isso, estas medidas têm que ser acompanhadas de uma moratória de pagamento de hipotecas e rendas, uma suspensão do pagamento de impostos e um congelamento do preço de bens essenciais, senão a sua entrega gratuita pelas autoridades. O povo português tem dados mostras de um enorme civismo.
O direito à vida tem que estar antes do lucro. O Governo suspendeu o direito à greve, mas não o direito a despedir, na declaração de estado de emergência. À semelhança de Itália, defendemos a proibição dos despedimentos durante a pandemia. É tempo de resgatar as famílias. Só uma parte da população, minoritária, tem uma almofada financeira para enfrentar esta crise.
O Governo insiste em manter a produção em grandes fábricas, e manter aeroportos e transportes públicos a funcionar. Nós estamos em guerra contra um vírus e em situações destas o que há a fazer é, na nossa opinião: a) paralisar todas as actividades não urgentes; b) deslocar-se sectores produtivos para o que é essencial. Na França já há fábricas de perfumes de marca a produzir desinfectantes e na Itália fábricas de roupa de luxo a produzir fatos para protecção do pessoal de saúde.
O vírus demonstra-nos que todos os seres humanos são iguais – não escolhe classe social ou etnia, mas escolhe idade: escolhe os mais frágeis, os mais velhos, que já tanto nos deram. Não lhes podemos falhar.
Depois de travada esta guerra será altura de repensar a organização social. Somos contra qualquer modelo socioeconómico que ponha em causa a democracia, as liberdades e os direitos individuais. Teremos de questionar com coragem os valores éticos de um modelo de sociedade onde impera apenas a amoralidade do lucro e a ditadura dos “mercados”.
Ana Aleixo, Médica Cardiologista, ex-diretora do Hospital São Francisco Xavier e Professora Aposentada da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa; Henrique Silveira, Matemático de Dinámicas Populacionais, Professor de Matemática do IST; Raquel Varela, Historiadora, Universidade Nova de Lisboa, autora de História do SNS (Âncora); Roberto della Santa, Cientista Social, UNL, Professor de Metodologia das Ciências Sociais da UFF
Membros do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho da FCSH NOVA de Lisboa