Morreu Rui Mateus Pereira, um antropólogo com um apurado sentido da História
Com um percurso académico centrado na relação entre as ciências sociais e o poder político no Estado Novo, ocupou também vários cargos públicos. Morreu na quinta-feira, aos 62 anos.
Publicou trabalhos de referência sobre a forma como as ciências sociais, em particular a Antropologia, contribuíram, durante o século XX, para que o império colonial português se perpetuasse e manteve um percurso como gestor público, em cargos ligados à administração central e local. Rui Mateus Pereira, antropólogo, morreu na quinta-feira, aos 62 anos, na sequência de uma “doença prolongada”, avança o Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade Nova, a cujo grupo de investigadores pertencia desde 2013.
Foi Rui Pereira, lembra ao PÚBLICO Pedro Aires Oliveira, académico que se tem dedicado ao estudo da História da Expansão e do colonialismo, quem “resgatou a importância do contexto criado pelo império português na evolução dos estudos antropológicos em Portugal”, analisando a actuação de várias equipas no terreno, em especial a do etnólogo Jorge Dias (1907-1973), nome histórico da disciplina, entre os macondes de Moçambique.
Conhecer para dominar: o desenvolvimento do conhecimento antropológico na política colonial portuguesa em Moçambique, 1926-1959, título da sua tese de doutoramento defendida em 2006 e amplamente citada pelos investigadores que lidam no dia-a-dia com temas relacionados com o colonialismo português, ainda à espera de publicação, “é uma obra importante, de referência”, diz por seu lado o historiador Miguel Bandeira Jerónimo, investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra e autor e coordenador de várias obras que abordam o período colonial e pós-colonial, de que O Império Colonial em Questão (Edições 70, 2012) é exemplo.
“Não sendo a única obra a fazê-lo, a tese do Rui Pereira é a primeira a abordar de forma verdadeiramente sistemática as relações entre a produção de conhecimento científico e o poder político no contexto do mundo colonial português”, diz este académico ligado ao CES que é também professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Nova.
É nesta tese dedicada às relações entre as ciências sociais e os governos de Lisboa entre a década de 1920 e o final da de 1950 que o antropólogo reflecte, entre outras coisas, sobre a possibilidade de o trabalho desenvolvido pelos etnólogos portugueses ter contribuído para a permanência dos portugueses em África, precisa o académico de Coimbra.
“E ele olha para tudo de forma muito crítica, procurando demonstrar até que ponto e de que maneiras o conhecimento científico foi instrumentalizado pelo poder político”, diz, colocando o enfoque em Moçambique e no trabalho da equipa coordenada por Jorge Dias, “caso exemplar” das relações entre o saber antropológico e a acção governativa em África durante o Estado Novo.
Rui Pereira, acrescenta o coordenador do IHC, parte dos relatórios reservados que Jorge Dias envia a António de Oliveira Salazar e a outros responsáveis pela política colonial, e de uma boa dose da correspondência que com eles troca, para traçar “um retrato sofisticado, por vezes crítico, da colonização portuguesa”.
“Ele mostra que Jorge Dias mantém com o regime uma relação complexa e que, tal como Orlando Ribeiro, via alguma bondade no projecto colonial português. Ao mesmo tempo que o critica, [Jorge Dias] vai dando conta do mal-estar que se instala entre os macondes em relação à ocupação”, diz Aires Oliveira.
Miguel Bandeira Jerónimo defende, por seu lado, que o antropólogo soube “demonstrar de forma clara” que a relação entre este académico que liderou a equipa a que se deve a criação do Museu Nacional de Etnologia e o Estado Novo “não é simples nem unívoca”, está cheia de contradições, de zonas cinzentas. “Rui Pereira questiona os limites da apropriação do conhecimento científico pelo regime, chegando à conclusão de que, muitas vezes, não é o saber que antecipa o exercício do poder. Mas mantém um olhar crítico, que questiona.”
O trabalho de Rui Pereira é também essencial para a análise das colecções etnológicas em Portugal: “Quem quiser estudar a forma como foram criadas as colecções africanas dos nossos museus tem de olhar para o que ele escreveu. Não foi o único a estudar este tema, mas produziu trabalho científico de grande qualidade.” Um trabalho que é também importante para o debate contemporâneo em torno da descolonização dos museus, temática sobre a qual o antropólogo também deixa artigos publicados (Descolonizar os Museus, com Vera Marques, 2019).
Ricardo Jorge, o Mal-amado. Os serviços de saúde militar no quadro da Grande Guerra e da gripe pneumónica (2019) é uma das obras que reflecte o seu interesse pelos arquivos militares. “O Rui tinha uma grande paixão pelo trabalho de arquivo e dizia que estavam largamente por explorar”, acrescenta Pedro Aires Oliveira, um dos autores da História da Expansão e do Império Português (com J. P. Costa e José Damião Rodrigues, Esfera dos Livros, 2014). A antropologia que gostava de praticar estava mais ligada aos papéis do que às pessoas: “Tinha um apurado sentido histórico e, se o tempo não lhe tivesse faltado, tenho a certeza de que ia estudar os serviços de informação portugueses durante a Guerra Colonial.”
Como gestor público Rui Pereira, professor da FCSH/Nova, assumiu a chefia do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (2002-2005) e da Direcção Municipal de Cultura da Câmara de Lisboa (2005-2008). Foi no contexto desta última que viu o seu nome envolvido num processo judicial em que foi acusado de participação económica em negócio e condenado pelo Tribunal da Relação. Também a sua passagem pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, a que presidiu, não foi pacífica: acabaria exonerado do cargo em Janeiro de 2015, na sequência da polémica em torno do colapso do sistema Citius.
No plano editorial, Rui Pereira trabalhou em várias publicações: a revista Oceanos (editada pela Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses), a Camões, e os Cadernos de Estudos Africanos.