Ainda há pessoas a vender serviços sexuais nas ruas e em apartamentos
Equipas de rua com trabalho suspenso ou reduzido ao mínimo. Trabalho online não será solução para todos. Activistas procuram formas alternativas de garantir sobrevivência, inclusive o financiamento colaborativo.
As organizações que trabalham com quem se prostitui têm recomendado a suspensão da actividade ou o exercício através do telefone ou do computador, mas esta quarta-feira ainda havia pessoas à espera de clientes em ruas esconsas e pequenos bordéis disfarçados de casas de massagem ou apartamentos partilhados. Para garantir a sobrevivência, já se discute o recurso a financiamento colaborativo.
A clientela caiu a pique desde que o novo coronavírus tomou conta dos noticiários alertando para o perigo de contágio. “Praticamente, não entra ninguém aqui desde o início da semana [passada]”, diz Vanessa, uma rapariga de 28 anos que vive no apartamento em que costuma trabalhar com outras mulheres em Lisboa, deixando a filha aos cuidados da avó. “Por mais que a pessoa queira ir para casa, como vai fazer isso sabendo que tem uma filha e contas para pagar? Renda, luz, água, comida. Estas contas todas não vão deixar de chegar.”
“Devemos desincentivar o trabalho sexual nesta fase, mas temos consciência de que para muitas pessoas não é possível pensar desta forma por uma questão de sobrevivência”, admite Ana Leite, do Porto G, equipa que se desloca aos locais de comércio sexual no Grande Porto, agora em regime de teletrabalho. A Agência Piaget para o Desenvolvimento, de que faz parte, suspendeu todo o trabalho presencial.
Conselhos práticos
Seguindo a estratégia de organizações internacionais, segunda-feira à noite aquela equipa publicou nas redes sociais uma nota com uma lista de recomendações: “Não aceites clientes com sintomas como tosse, suores e dificuldades em respirar, lava bem as mãos e a cara, sobretudo entre clientes e quando regressas do exterior; garante que os clientes tomam as mesmas medidas que tu: desinfecta com frequência o WC e o quarto, bem como os interruptores e as maçanetas, sem esquecer o telemóvel; mantém o espaço ventilado e arejado.”
Por causa do factor novidade, há muita mobilidade. Muita gente faz “praças”, isto é, estadias de uma semana, uma quinzena ou um mês, aqui e ali, e paga pelo uso do espaço ao dia, à semana, à quinzena ou ao mês. Algumas nem têm casa, vivem em circulação. A quem se encontrava nessa situação, a equipa do Porto G aconselhava a negociar com os proprietários, “de forma a prolongar o tempo e ajustar os valores”. “Se possível, pondera alugar um quarto para esse período. Se tens residência própria, pondera apoiar alguém com menos alternativas.”
Já estava a acontecer. Terça-feira, via telefone, ao conhecimento de Júlio Esteves, da equipa de rua do Grupo de Activistas em Tratamento (GAT), em Lisboa, iam chegando exemplos de pessoas que iam limitar-se a dividir as contas fixas dos apartamentos, em vez de cobrar os valores habituais. Mas também exemplos de pessoas postas na rua ou prestes a sê-lo.
Júlio mantém-se disponível por telefone, mas deixou de fazer os seus giros habituais pelos apartamentos com material profiláctico. Está, de resto, reduzido ao mínimo todo o trabalho desenvolvido no Espaço Intendente, um centro de base comunitária destinado a pessoas envolvidas em sexo comercial e outros grupos vulneráveis para o rastreio do VIH e outras infecções sexualmente transmissíveis.
Para evitar a propagação de coronavírus, as várias equipas de rua suspenderam o trabalho de proximidade ou reduziram-no ao mínimo. A Adições, do Gabinete de Atendimento à Família, em Viana do Castelo, persiste. Como conta a coordenadora, Cláudia Marinho, às mulheres que acompanham além de preservativos só podiam oferecer informação e luvas, já não têm máscaras, nem desinfectantes.
Do medo do contágio ao medo de não ter comida na mesa
Em Lisboa, Alexandra S. Cort, autora do blogue Casa da Mãe Xana e co-fundadora do Movimento dos Trabalhadores do Sexo (MTS), não esconde o medo. “Há duas semanas que os meus filhos estão praticamente isolados. Nem um abraço lhes dou, com medo. Ando dentro de casa de máscara e antes de entrar troco a roupa e tomo banho no quintal.”
No fim-de-semana, ainda brincava. No início desta semana, já não. Podendo, Alexandra suspenderia a actividade. “Seguro seria poder parar de trabalhar tendo alguns apoios do Estado e depois pagar impostos para ajudar a levantar o país”, comenta, fazendo a defesa da regulamentação do trabalho sexual entre adultos livres e informados como qualquer trabalho. “Quem vai sustentar os nossos filhos? Vão ser retirados?”
O Porto G sugere teletrabalho. Há inúmeras plataformas de trabalho online. Webcam, vídeos, chats e fotografias podem ser usados. Alexandra ri-se. “Mantenho a fé. Nunca vi tantas trabalhadoras do sexo a rezar. Ninguém tem cabeça.”
Não será uma opção para todos. “Há pessoas que só trabalham online ou maioritariamente online e para essas será mais fácil manter o trabalho. Para os que não fazem isso será mais difícil agora no início”, concede Ana Leite. “O trabalho online é uma opção para uma minoria”, corrobora Maria Andrade, porta-voz do Grupo de Partilha d’a Vida, em Braga, e do MTS. Há que ter espaço para estar e dinheiro para a inscrição. “A maioria trabalha fora e regressa a casa depois do trabalho para tratar dos filhos, como qualquer mãe.”
Por estes dias, Maria Andrade desdobra-se em contactos para socorrer as mais aflitas: “Direcção-Geral da Saúde, Câmara de Braga e juntas de freguesia colaboram. É em Braga que reside um grande número de trabalhadoras da região Norte”. Conseguiu apoio alimentar para duas dezenas que trabalham em zonas interditas, como Felgueiras ou Lousada. “Como todos os trabalhadores precários e sem direitos laborais, a única coisa que queremos é assegurar o alimento para os nossos filhos. Não queremos estar em risco, nem pô-los em risco, mas não estamos a conseguir respostas suficientes”, lamentava, esta manhã. Entretanto, recebeu luz verde do Banco Alimentar. Está a tentar passar a palavra, via programa Autoestima, que cobre a região Norte. Pelo menos em Braga e em Lisboa, "quem precisar pode pedir apoio alimentar.”
Em Coimbra, a equipa de intervenção social Ergue-te, valência da Fundação Madre Sacramento das Irmãs Adoradoras, também está com giros suspensos e atendimento reduzido. “O que as pessoas estão a pedir é alimentos”, afiança Marta Nunes, responsável pela equipa. Algumas já recebiam esse apoio. Outras estão a pedi-lo e, não tendo meios para cozinhar, são encaminhadas para organizações que servem refeições.
No seio do MTS discute-se agora a possibilidade de recorrer a plataformas de financiamento colaborativo. A ideia é o go fund me para ajudar quem, não conseguindo ganhar dinheiro agora, também não tem uma poupança. Ideia de novos membros com experiência em movimentos internacionais.
No meio deste caos, Maria Andrade congratula-se com o novo acórdão do Tribunal Constitucional que defende a legalização do lenocínio simples e a regulamentação da prostituição. Fosse a actividade regulamentada, as ferramentas para lidar com a crise sanitária seriam outras. Assim, só que trabalham em casas de massagens ou noutras actividades que lhes permitem passar recibos têm alguma protecção. “Liguei para a DGS, para o delegado de Saúde. Ninguém estava a pensar nestas pessoas. Não houve plano, não houve nada.”