Voar em tempos de covid-19: “Não tive coragem de dizer aos meus pais que não os ia abraçar”

Num regresso ao Rio de Janeiro, com partida de Lisboa, a inquietação e a falta de informação. “Fiquei surpreendida por só ter ouvido falar em coronavírus uma única vez durante os dois voos - e não foi nem ao descolar de Portugal, nem na escala em Madrid”.

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"Por favor mantenha a distância social e siga as recomendações de higiene", sinal no aeroporto de Lisboa

A recomendação é ficar em casa, mas eis-me no sábado de manhã no Aeroporto da Portela, pronta para voar para os meus pais no Rio de Janeiro com escala em Madrid. A inquietação de me ver rodeada de pessoas de máscara, algumas das quais sem manter a chamada distância social, foi crescendo com a falta de indicações nos voos. Não é simples informar sobre estas questões sem gerar nervosismo (e num voo de onze horas isso não é nada fácil gerir), mas fiquei surpreendida por só ter ouvido falar em coronavírus uma única vez durante os dois voos - e não foi nem ao descolar de Portugal, nem na escala em Madrid.

Em Lisboa, avistei um sinal para mantermos as distâncias. Mas foi a única indicação que tive. Na sala de embarque não vi nada e as pessoas iam-se sentando ao lado umas das outras livremente... A dada altura levantei-me para ir para um lugar sem ninguém ao lado.

Nos voos, só à chegada ao Brasil, tivemos que permanecer sentados até que uma funcionária da alfândega entrou e alertou que a covid-19 é um risco e que as pessoas deviam estar atentas aos sintomas. Dos comandantes nem uma palavra, do resto da tripulação também não (a não ser quando perguntei directamente), nem flyers nos assentos, nada. Será que sequer reforçaram a desinfecção dos assentos entre os voos? 

Viajei ao lado de uma rapariga que, logo ao chegar, desinfectou o assento com um lenço humedecido em álcool. Suspirei de alívio. Não falámos durante quase todo o voo (aproveitei para assistir a quatro filmes, já que não conseguia adormecer), mas quebrei o silêncio meia hora antes de aterrarmos. Perguntei-lhe o que planeava fazer quando chegássemos. Tinha pessoas à espera? Ia dar-lhes abraços? Contou-me que tinha passado as últimas semanas em Espanha, onde vive o pai, à procura de emprego. Meio ano depois de se licenciar, tinha finalmente arranjado trabalho numa empresa de viagens... em Itália. Sem previsão de poder iniciar funções, com o país em quarentena, resolveu voltar para junto da mãe, no Brasil.

Falámos sobre a recomendação do governo brasileiro de uma semana de isolamento para viajantes internacionais (indicação suspensa enquanto estávamos a bordo). Ela talvez não abraçasse a mãe, por cautela - mas como se atravessa um oceano de saudade e se fica uma semana sem abraçar os seus? Sabíamos que as indicações eram essas, mas as letras frias das regras não são fáceis de traduzir no calor dos afectos.

Viver em tempos de coronavírus é ter que lidar com tantos tempos diferentes. O tempo de nos prepararmos para um inimigo que durante muito tempo nem sequer compreendíamos, de aprendermos a entrar em stress sem entrar em pânico. De traduzir no comportamento uma preocupação em relação a um inimigo que não podíamos ainda ver, tornando-o um pouco mais visível para as pessoas à nossa volta que ainda estavam em tempos diferentes, mais próximas da inércia do que do alerta necessário.

Atravessando o oceano, novos tempos entram em colisão - os tempos de Portugal, que começou a mexer-se (ou a parar?) há vários dias, e os tempos do Brasil, um gigante que tardou a acordar para as medidas excepcionais que os tempos exigem. Com as recomendações ainda moderadas do governo brasileiro e uma postura contraproducente do Presidente Jair Bolsonaro, revivi os dias em que, em Portugal, as pessoas à minha volta achavam exageradas algumas precauções que tomava e pedidos que fazia. 

Esperam-me dias atípicos, na dúvida sobre quando as fronteiras se fecharão em definitivo, sem almoços com tios e primos, sem beijinhos nem abraços. Desistimos de visitar o meu avô, estamos prestes a cancelar a festa de aniversário do meu pai, os passeios ficam em stand by. Tenho que confessar: não tive coragem de dizer aos meus pais que não os ia abraçar. 

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