O vírus que faz parar para pensar
O vírus tirou-nos a proximidade, o toque, o abraço. Tudo gestos que às vezes não valorizamos, porque os damos por garantidos. Ninguém sabe o que irá acontecer.
Avenidas desertas, isentas de vida e carros, apenas com uma ou outra pessoa, envergando máscaras faciais, no meio de vias rápidas e arranha-céus. Podia ser uma cidade-fantasma de um filme pós-apocalipse. Eram algumas fotografias da cidade chinesa de Wuhan em quarentena há semanas.
Quando em 1982, Ridley Scott filmou Blade Runner e mostrou uma Los Angeles devastada pela chuva ácida, aquele futuro parecia tão distante que poucos se atreveriam a considerá-lo possível. Agora aquelas imagens de cidades chinesas ou italianas parecem-nos familiares. Filmes, livros, arte ou música em que a humanidade surge devastada por vírus, extraterrestres ou desastres climatéricos são comuns. Muitas distopias já imaginavam um destino deste tipo. Ficar em casa. Trabalhar desde os computadores. Sociabilização pelas redes socais. Total isolamento. Ligados na solidão.
Durante décadas as representações artísticas dos cataclismos eram provocadas por uma ameaça exterior. Hoje somos nós. Não há pandemia para a qual não aprontemos significados humanos, como se a natureza nos penalizasse pelos excessos. Como se a natureza não fossemos também nós.
O novo vírus tem provocado mortes, pânico, paranóias racistas e manifestações de nacionalismo, mostrando que quanto mais ligado o mundo está, maiores as hipóteses de um desastre local resultar em pavor global, sem que as respostas consigam ser igualmente universais. Não foi isso que aconteceu também com a crise financeira de 2008, com os fluxos financeiros globais não conseguindo ser regulados pelos poderes locais?
Se nos últimos anos já havia propensão para muros, segregações, desigualdades crescentes, estados de emergência que se tornam permanentes e crises económicas seguidas de pedidos de sacrifício e medidas de austeridade que penalizam os do costume, dir-se-ia que o cenário actual parece propício a impulsionar ainda mais essa realidade.
Claro que podemos surpreender-nos. Acontecimentos terríveis como este podem ter consequências imprevisíveis. A competição extrema não desaparecerá por artes mágicas, mas haverá também espaço para a empatia e a solidariedade incondicional. Cada território continuará a ter autonomia sobre o que fazer, mas surgirão cada vez mais vozes a requerer uma resposta coordenada globalmente. Numa época em que a sustentabilidade do planeta está na ordem do dia, somos agora impelidos a consumir menos, a trabalhar de forma diferente, a viajar o mínimo. Essa desaceleração terá efeitos económicos imponderáveis, mas tudo indica ambientalmente positivas — será desta que ensaiaremos novos modelos de crescimento que não ponham em causa o equilíbrio do planeta?
Será certamente um momento que dará que pensar. Numa altura de políticas discriminatórias muitos de nós, por causa do vírus, irão confrontar-se com situações que aqueles que tendemos a estigmatizar conhecem bem. Numa sociedade baseada na produtividade e no consumo, de um momento para o outro somos obrigados a valorizar um tempo existencial cujo valor perdemos de vista, se daí não resultar proveito financeiro. Numa altura em que os nossos filhos passam demasiado tempo nas creches, seremos obrigados a encontrar soluções alternativas para voltarmos a estar realmente com eles. O vírus tirou-nos a proximidade, o toque, o abraço. Tudo gestos que às vezes não valorizamos, porque os damos por garantidos. Ninguém sabe o que irá acontecer. Tanto podemos regressar à selvajaria, como esta ser a hora da responsabilidade partilhada, de um destino escrito por todos, porque dependemos uns dos outros.