O país do faz de conta, mas que certamente pagará a conta!
Há duas semanas veio a público que o parecer técnico emitido internamente pelos técnicos do ICNF, sobre os impactos do aeroporto do Montijo na avifauna estuarina, foi negativo!
Desde que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) foi tornado público, em Julho de 2019, as falhas no que toca à avaliação dos impactes nas aves do estuário têm vindo a ser reveladas. Em Setembro de 2019, estas limitações foram apresentadas em sede de consulta pública à Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que emitiu em Janeiro de 2020 a Declaração de Impacto Ambiental (DIA) “favorável condicionada”, tendo anulado praticamente qualquer discussão posterior sobre esta matéria. Contudo, sabe-se agora que o parecer dos técnicos da autoridade nacional para a conservação da natureza (Instituto da Conservação da Natureza e Florestas – ICNF) atesta que os impactes desta obra “… põem em causa a integridade da própria Zona de Protecção Especial” do estuário do Tejo e que a avaliação do ICNF “deveria ser negativa”, sob pena de “possibilidade de um processo de contencioso comunitário futuro”.
No mesmo dia em que esta notícia foi publicada no Expresso, o ICNF esclarece no seu site que o Conselho Directivo não alterou qualquer parecer técnico interno e que a decisão “foi tomada com base exclusivamente no trabalho dos técnicos”. Infelizmente, este parecer dos técnicos não consta do EIA. Mas das duas uma: ou o parecer do Conselho Directivo foi negativo, seguindo portanto a recomendação dos técnicos, ou esse parecer não seguiu a recomendação dos técnicos. Esta última possibilidade parece ser a mais provável, uma vez que a APA, na voz do seu presidente, sempre indicou que o “ICNF encontrou um equilíbrio”. Sem divulgação pública do dito parecer dos técnicos, nunca se saberá o que realmente se terá passado.
Admita-se que o Conselho Directivo do ICNF, dentro das suas capacidades, possa ou não decidir em conformidade com as recomendações apresentadas pelos seus técnicos. E que o argumento que suportou a decisão, como indicado na referida notícia, é que sendo o aeroporto do Montijo uma realidade inalterável, a emissão de uma declaração de interesse público pelo Governo seria o cenário mais provável perante uma recomendação negativa do ICNF e APA. Nesse caso, o ICNF não teria a possibilidade de estabelecer medidas de compensação. Contudo, evitando-se o chumbo e recomendando uma DIA favorável condicionada, pode pelo menos apresentar e exigir as tais medidas de compensação. Foi, portanto, usado o “princípio da previsão”; mas o que é isto senão um jogo de faz de conta? Faz-se de conta que os impactos comprovados são compensáveis, sabendo-se que não o são!
Mas estão aqui também implícitos outros dois níveis de faz de conta. O primeiro é que a pressão do Governo, mesmo que de forma indirecta, forneceu aparentemente um argumento para o ICNF tentar fazer o melhor possível, perante o receio de ficar sem possibilidade de nada fazer. Faz-se de conta, portanto, que a decisão é puramente técnica quando não o é, caso contrário teria sido negativa. Se a APA já declarou várias vezes que nunca sentiu pressões, será que o ICNF pode dizer o mesmo? O segundo é que parece fazer-se de conta que o contencioso comunitário não terá lugar ou que o seu resultado não terá impacto financeiro ou institucional. Neste momento há oito organizações de defesa do ambiente que têm em andamento uma queixa a Bruxelas. E há pelo menos mais três organizações internacionais, com vasta experiência a este respeito, que farão o mesmo, considerando apenas as questões que dizem respeito à avifauna. Sendo que os próprios técnicos do ICNF admitem os impactes “negativos, significativos, de magnitude moderada/elevada, permanentes e irreversíveis na avifauna” e aparentemente previram esta possibilidade, faz-se de conta que Portugal não irá pagar a conta, como já aconteceu noutros casos?
Acresce o facto de que este é um caso absolutamente flagrante, pois o estuário do Tejo é uma das mais importantes zonas húmidas da Península Ibérica, albergando o maior número de aves aquáticas ao nível nacional, como já foi tantas vezes referido. Por essa razão o estuário do Tejo é uma área protegida consagrada na legislação nacional, ao nível comunitário e reconhecida em tratados internacionais, como a Convenção de Ramsar. Para além dos impactos serem reconhecidos na DIA, será certamente fácil comprovar que as medidas de compensação não serão efectivas, nomeadamente no que diz respeito às zonas de alimentação, pois tal área é impossível de compensar mediante os impactes estabelecidos no próprio EIA (que, ainda assim, pecam por defeito).
Seguindo o mesmo princípio da previsão evocado anteriormente, quando a condenação de Portugal tiver lugar, quem é que vai pagar a multa? Será que a ANA Aeroportos usará os seus lucros, ou será o dinheiro dos contribuintes que irá a suportar a responsabilidade política dos seus decisores? E aqui discute-se apenas dinheiro, porque a perda do nosso património natural terá já sido irremediavelmente consumada a favor de interesses privados, neste país onde se insiste em fazer de conta.
Indicar que o interesse nacional está em jogo, porque é urgente aumentar a capacidade aeroportuária e que portanto se tem de avançar rapidamente com a localização Montijo, estando a decisão tomada há vários anos, ignorando o agora comprovado ataque flagrante à biodiversidade e às leis instauradas para a sua conservação, é fazer de conta que esta solução não é exclusivamente uma opção política tomada muito antes de qualquer EIA, logo, com manifesta falta de informação e que se respeitou de forma transparente e sem pressões os processos estipulados na lei.
A confirmar-se a referida notícia, saúdo os técnicos do ICNF que, apesar das dificuldades que possam ter no seu quotidiano profissional, apresentaram um parecer técnico sem cedências e que dá razão a vários aspectos apontados anteriormente.