Mulheres e homens: diferenças ou desigualdades?

A noção de desigualdade é uma construção histórica e política profundamente marcada pelo contexto que se vive em determinado momento

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Mulheres manifestam-se em Lisboa no passado dia 8 de Março LUSA/ANTóNIO PEDRO SANTOS

No seu livro A política, Aristóteles defendia a igualdade como princípio orientador para promover uma sociedade mais coesa. Contudo, simultaneamente, na mesma obra, defendia a escravatura.

“Sem dúvida, existe um talento para comandar e para servir. Por exemplo, em Siracusa, uma espécie de preceptor abriu uma escola de escravidão e exigia dinheiro para preparar as crianças para este estado, com todos os pormenores de suas funções. Pode haver um ensino completo dessa espécie de profissão”
(Aristóteles in A Política)

Ou seja, a escravatura pode ser defendida por pessoas que apregoam a igualdade. Para Aristóteles a escravidão não ia contra o princípio da igualdade porque fazia parte da “natureza” de algumas pessoas serem “escravas”, tal como fazia parte da “natureza” de outras terem “talento para comandar” – eram diferentes, pelo que tinham funções diferentes e, simultaneamente, essa diferença era enquadrada como complementar.

Por que é isto importante? Para percebermos o conceito de desigualdade. O que antes se conceptualizava como ‘diferença’ (senhor/escravo) e como ‘natural’ (escravatura), hoje considera-se desigualdade. O que mudou? O que é preciso para que uma situação natural passe a ser considerada desigualdade”? O reconhecimento da sua injustiça!

As diferenças existentes entre ‘senhor’ e ‘escravo’ passaram a ser conceptualizadas e reconhecidas como injustas ao nível político, institucional e simbólico. Desta forma, a escravatura deixou de ser encarada como natural, e passou a ser considerada uma situação censurável de um ponto de vista ético e, por isso, passível de intervenção por parte das políticas públicas.

Reforça-se, assim, que a noção de desigualdade é uma construção histórica e política profundamente marcada pelo contexto que se vive em determinado momento.

Vamos então à questão central deste artigo: as disparidades salariais existentes nos dias de hoje, entre mulheres e homens estabelecem uma diferença ‘natural’ entre os sexos ou, por outro lado, constituem uma desigualdade de género?

Primeiro dado: a igualdade salarial entre mulheres e homens não é constatada em nenhuma actividade económica. Questão que se coloca: será que este facto traduz o carácter ‘natural’ da desigualdade salarial?

Segundo dado: o diferencial salarial, em prejuízo das mulheres, é directamente proporcional ao nível de escolaridade e ao nível de qualificação. Isto significa que quanto mais elevado o nível de habilitação académica e o nível de qualificação das mulheres, maior o diferencial salarial em prejuízo destas. Questão que se coloca: será que isto poderá indiciar uma desigualdade?

À primeira vista seria fácil responder: as assimetrias salariais entre mulheres e homens não constituem, por si só, uma desigualdade. Primeiro, porque de forma geral sentimos, no nosso dia-a-dia, que mulheres e homens têm a mesma dignidade enquanto pessoas e a própria lei já exige tratamento igual para ambos os sexos (nesta e noutras matérias), depois porque este indicador apenas diz respeito a pessoas assalariadas, ou seja, a um segmento da população (e não ao seu todo) e, finalmente, porque estas assimetrias estão, muitas vezes, relacionadas com as escolhas (educacionais e profissionais) que mulheres e homens fazem e que vão, em larga medida, influenciar o seu salário. Isto é, o facto de os homens tendencialmente estarem em actividades mais bem remuneradas e as mulheres em actividades e profissões menos bem remuneradas traduz uma escolha dos próprios indivíduos, pelo que não pode ser encarada como desigualdade.

Chegando a este ponto podemos perguntar: porque é que as mulheres tendem a optar por ramos de actividade e profissões mais mal remuneradas e os homens pelas mais bem remuneradas? A resposta reside, a meu ver, fora do mercado de trabalho.

Para a sociedade em geral, o trabalho pago é fonte de utilidade social e o trabalho doméstico (não pago) é encarado como fonte de utilidade individual/familiar e, por isso, mais desvalorizado. Não há complementaridade entre a vida pública e a vida doméstica, há uma hierarquia de valor atribuído a um e a outro, com claro desvalor de todo o trabalho realizado na esfera privada.

Assim, não é de surpreender que as mulheres estejam representadas em profissões mais mal remuneradas, porque as mesmas constituem, em grande parte, uma extensão das tarefas tradicionalmente desempenhadas pelas mulheres no contexto do espaço doméstico (limpar, cuidar, educar, gerir emoções…).

Também não nos surpreende que os homens optem por carreiras mais bem remuneradas, pois estas, geralmente, ligam-se a características, tradicionalmente atribuídas aos homens, como por exemplo, a capacidade analítica, habilidade estratégica e liderança.

Por outro lado, esta ‘natural’ atribuição do trabalho doméstico e de cuidado às mulheres tem ainda implicações mais perniciosas: contribui para que os homens possam despender uma maior quantidade de tempo no seu emprego e consequentemente possam auferir ganhos mais elevados e, pelo contrário, as mulheres possam ter de “optar” por horários de trabalho mais reduzidos, trabalho a tempo parcial ou até interrupções na carreira com consequente penalização das mulheres em termos de tempo que podem dedicar ao trabalho remunerado, em termos do seu salário, em termos de obstáculos à subida na carreira e ainda em termos de pensões futuras mais baixas.

Ou seja, as diferentes “opções” são fortemente influenciadas (e até mesmo condicionadas) por dois aspectos:

  • A representação sobre o que as mulheres e os homens devem ser (traços de género);
  • A representação sobre o que as mulheres e os homens devem fazer (papéis de género)

Estas representações generalizadas e socialmente valorizadas e amplamente difundidas influenciam não só a identidade de mulheres e homens e as suas expectativas e escolhas relativamente à sua vida, à sua profissão e ao futuro, mas também moldam as expectativas dos agentes económicos e da sociedade em geral. De destacar ainda que esta “especialização” das mulheres em tarefas domésticas e de cuidado influencia ainda o próprio recrutamento, com aquilo a que as empresas designam por “custos indirectos associados à maternidade”, não se fazendo este tipo de raciocínio relativamente aos homens que também serão ou são pais.

As diferenças biológicas entre homens e mulheres e o discurso da sua “complementaridade” (tal como acontecia relativamente à complementaridade entre senhores e escravos) continuam a estruturar a forma como a sociedade, a família e o trabalho se encontram organizados, estabelecendo-se, desta forma, um ciclo vicioso que reproduz a divisão sexual do trabalho, com claro prejuízo para as mulheres.

Neste sentido, o gender pay gap apresenta uma particularidade interessante: ao mesmo tempo que constitui, por si só, um indicador de diferenciações salariais entre mulheres e homens, não remetendo forçosamente para uma situação de desigualdade; permite-nos perceber que as escolhas das pessoas são balizadas por discursos e práticas enraizadas e naturalizadas que distinguem o que mulheres e homens devem ser e fazer e que, historicamente, têm prejudicado mais as mulheres, configurando uma situação de desigualdade.

“Apesar dos progressos alcançados na lei e na vida, apesar do igual estatuto de cidadania das mulheres e dos homens tanto na esfera privada como na esfera pública, a maioria dos nossos indicadores e muito do nosso quotidiano ainda reflectem papéis e expectativas sociais padronizados em função da divisão sexual estanque e tradicional do trabalho: para as mulheres, a obrigação dos cuidados à família, o trabalho invisível e não remunerado, o espaço doméstico, o desvalor de um emprego entendido como suplemento do rendimento familiar, que só ‘compensaria’ se rendesse mais do que a soma dos gastos inerentes ‘à saída da mulher de casa’, aliada ao não agravamento de encargos fiscais, a ‘dupla tarefa’ e as inerentes culpabilidades por incumprimentos relativos; para os homens, a obrigação do sustento familiar, o trabalho pago, a carreira, o poder no espaço público, o desvalor do investimento no apoio à vida doméstica e familiar, a liberdade de dispor sem constrangimentos do tempo que não correspondesse ao exercício da actividade profissional.”
In Manual de Formação de Formadores/as em Igualdade entre Mulheres e Homens (CITE, 2003, p. 11).

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