Sabe vender-se bem?
Até há algum tempo ser-se um vendido era um dos maiores insultos que se podia receber. Hoje saber “vender-se bem” é uma grande aspiração.
História com dias. Encontrámo-nos na rua e perguntei-lhe como ia a vida. Estava no desemprego há semanas. Tinha que sair da casa onde estava daí a três meses. E ia a tribunal com a mãe da filha, de quem se havia separado, por causa da custódia da mesma. Mas antes que eu balbuciasse seja o que for, já ele acrescentava: “Mas isto fica entre nós porque não existe pior, quando estamos no mercado e temos que vender-nos, do que assumirmos que estamos em baixo.” “Como assim?”, inquiri. “Não sabes?! O que se deve dizer quando temos de nos vender é que estamos muito ocupados, com projectos em andamento. É isso que atrai trabalho.”
Não sabia. Mas, lá está, devo ser mau a “vender-me”. E fiquei a pensar como a linguagem acompanha as mutações sociais. É aliás por isso que tantos conflitos irrompem nos últimos tempos tendo a linguagem no seu centro, num mundo onde uma velha ordem transmite sinais de degeneração, mas sem que uma nova tenha sido capaz de ocupar o seu lugar. Palavras que ontem tinham um sentido claro tornam-se ambíguas e em alguns casos na antítese daquilo que significavam outrora.
Até há pouco ser-se um vendido era um dos maiores insultos que se podia receber. De há algum tempo a esta parte saber “vender-se bem” é uma grande aspiração, para quem deseja um novo emprego, valorizar o que tem ou subir na escala social. “Vender-se bem” é um louvor. Faz parte do idioma corrente. Não é comunicar-se com sabedoria. Não é melhorar as competências para expandir as suas possibilidades de empregabilidade. É outra coisa. É saber negociar-se, insinuar-se, promover-se. É fazê-lo com astúcia, de forma ardilosa até, de forma a retirar daí ganhos económicos.
A linguagem nunca é neutra. Nas expressões aparentemente mais superficiais reside o que de mais profundo uma sociedade em determinado momento expõe. “Vendermo-nos”, neste sentido, mais do que ter algo para transaccionar com alguém por um preço estabelecido, é assumir que o sujeito se converte no objecto de venda através da coisificação da própria pessoa. Ter as competências adequadas para uma tarefa pela qual nos será devida uma retribuição por essa mais-valia é outra coisa. A mercantilização do trabalho confunde-se com a mercantilização da pessoa que o leva a efeito. O que se aprecia é a estratégia. É propor o “investimento” na sua pessoa no momento certo.
O verbo vender domina o vocabulário e empobrece a nossa imaginação. É fácil confundir a transacção do trabalho com a venda de quem o realiza, um facto exponenciado no ecossistema digital, onde se pode conjugar o marketing com as competências do eu, funcionando a autoencenação como montra ou marca, ou mesmo como um projecto empresarial.
Hoje estamos sempre em modo de (auto)venda, logo, também de compra. Em conversa, dizemos, “compro essa ideia” ou “compro a tua alegria.” Quer-se adquirir o poder que as palavras têm sobre a realidade. A nomenclatura economicista invade a linguagem para descrever o que nada tem a ver com vender e comprar. Abundam os cursos que prometem técnicas infalíveis de autopromoção. O mercado impôs a sua retórica. Essa é a maior prova da sua supremacia total. E pelos vistos move-se. O meu amigo já arranjou emprego. E tem nova namorada.
É o mercado a funcionar, dir-se-á. Talvez. Embora também seja a continuação da economia do senhor feudal sobre o servo, ou do amo sobre o escravo, numa lógica onde não há lugar para assumir uma existência plena. Há apenas a violência do simulacro ou da representação. Ser-se produto ou mercadoria em permanência.