O “voo” da Joana
Quem assistiu ao programa Got Talent Portugal, poderá ter-se interrogado como foi possível a dupla Joana/Celso ter chegado ao programa e se o botão dourado teria sido pressionado, entre lágrimas do júri e aplausos de pé, se Joana não tivesse Trissomia 21. A minha intuição diz-me que não. Foi uma discriminação positiva, ainda necessária.
Uma dupla emocionante e uma atuação memorável. As frases de incentivo acumulam-se nas redes sociais para descrever o momento protagonizado por Joana Cruz, 25 anos, bibliotecária no ISPA – Instituto Universitário, e por Celso Jumpe, de 28, artista de circo contemporâneo, na primeira emissão do Got Talent Portugal de 2020. Quem assistiu, poderá ter-se interrogado como foi possível esta dupla ter chegado ao programa e se o botão dourado teria sido pressionado, entre lágrimas do júri e aplausos de pé, se Joana não tivesse Trissomia 21. A minha intuição diz-me que não. Foi uma discriminação positiva, ainda necessária. Como reconheceu um dos jurados, “há coisas na vida extraordinárias”: “Não tinha de ser tecnicamente perfeito, estava em causa a forma como vocês se conseguem relacionar. É simplesmente notável”.
Na verdade, todo o percurso da Joana mostra que ela tem sido um exemplo de superação e de integração, e a “prova incrível” que a destacou na televisão foi apenas mais uma das suas conquistas. Pode pensar-se que o seu sucesso se deve exclusivamente às suas características, à sua habilidade e trabalho árduo, e/ou aos profissionais que a apoiam. Mas, quem conhece mais de perto o que se passa com a inclusão das pessoas com deficiência em Portugal, sabe o quão difícil é a sua participação em eventos que se destinam a todos e não apenas às pessoas com necessidades especiais. E é aqui que entra a extraordinária família da Joana.
Conheço-os a todos desde o nascimento da Joana em abril de 1994, já que a díade mãe-bebé integrou a amostra do estudo que fiz no âmbito do Mestrado em Psicologia Educacional do ISPA. Continuei esse estudo muito para além do mestrado e, no caso da Joana, desde a década de 1990 que convido a sua mãe para me acompanhar a inúmeros encontros para formação de profissionais na área das Necessidades Educativas Especiais. Faço-o porque o testemunho da mãe sempre foi inspirador, mesmo quando parecia que apenas ela acreditava nas competências da filha. Uma atitude que a fez nunca desistir de lutar para que a Joana participasse plenamente ao lado das suas colegas em todas as atividades. Foi assim na escola regular que sempre frequentou, onde a mãe exigiu (e conseguiu) que ela fosse a todas as aulas e não ficasse confinada à sala de apoio. Foi assim no teatro, num grupo amador onde era a única pessoa com deficiência. É assim no Centro de Documentação do ISPA onde a Joana trabalha há dois anos. É assim na prática da corrida, onde já conseguiu alguns prémios e onde participa plenamente... a correr, mas também a conviver!
Todos os elementos da família da Joana são facilitadores da sua inclusão. Porque não admitem que seja de outra forma, porque exigem em todos os contextos que seja tratada como pessoa, e não como pessoa com Trissomia 21. Porque os conheço bem, não fiquei admirada por saber da sua participação no Got Talent Portugal e do à-vontade com que interpelou os membros do júri.
Como nunca baixaram os braços, acreditando que novas experiências proporcionam novas competências, os pais de Joana chegaram ao Armazém Aério, uma academia e companhia de novo circo. Ali, a Joana não é a única artista com deficiência, já que o objetivo desta academia é promover um ambiente de verdadeira inclusão e aprendizagem mútua. As excelentes prestações têm-na levado a exibições em vários palcos, e o que vimos na edição do Got Talent Portugal mostra bem a realidade inclusiva que ali se vive. A principal missão? Quebrar barreiras, e “a Joana quebra-as”, afirma Celso, companheiro de palco daquela que não só quer dar o seu melhor como “mostrar que toda a gente é capaz de fazer tudo”.
O caminho da Joana e da família tem sido fácil? Nem sempre. Mas em iguais circunstâncias muitos pais teriam cedido às pressões e desistido do percurso inclusivo…
Atrevo-me a pensar que a participação da mãe e do pai da Joana na Pais-em-Rede, associação de apoio aos pais para a inclusão de pessoas com todo o tipo de incapacidades e deficiências, e na qual me incluo desde 2009, poderá ter dado, a esta e a outras famílias, apoio para lutar pelos direitos dos seus filhos. A Pais-em-Rede existe para capacitar os pais e mudar comunidades. Porque, embora espelhada na Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2007, ratificada por Portugal em 2009, bem como em muitos outros diplomas internacionais e na legislação Portuguesa, em 2020 a inclusão está ainda longe de ser uma realidade — a participação da Joana e do Celso veio dar um enorme contributo para esta missão da Pais-em-Rede.