O Porto à sorte

Ao desconstruirmos o processo do sorteio de arrendamento da Câmara do Porto, percebemos que a visão da autarquia para o Morro da Sé é coerente com o processo corrente de gentrificação, propondo, no entanto, fazê-lo a médio e longo prazo, com os locais.

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Paulo Pimenta

No seguimento do recente sorteio de arrendamento lançado pela Câmara Municipal do Porto (CMP), parece pertinente, e até mesmo urgente, dar o devido enfoque à doença de fundo: a impotência financeira da maioria da população em encontrar habitação no actual mercado. Deste modo, vemos que o sorteio evita fazer as perguntas difíceis reforçando e perpetuando o problema, mascarando-o.

Foram abertas no passado dia 20 de Janeiro as candidaturas para o sorteio de 15 fogos reabilitados pela Porto Vivo, SRU, destinados a agregados de classe média, na zona do Morro da Sé. Da oferta habitacional fazem parte apartamentos entre a tipologia T0 e T2, cujas rendas variam entre os 152 e os 934 euros, sendo que este último valor faz estremecer a categoria de renda acessível quando o salário mínimo nacional é de 635 euros. Levantam-se algumas questões de princípio: a legitimidade de uma entidade pública sortear um direito que deveria estar assegurado a todos; a escolha de certos agregados de classe média; o ignorar da crescente lista de pedidos de ajuda habitacional; e, por fim, o número de fogos disponíveis, que é como atirar areia para os olhos de uma população que se vê cada vez mais afectada por esta crise.

A elegibilidade dos agregados é ditada por um número calculado a partir dos factores escolhidos pelo município: ser residente ou trabalhador no Porto (50 pontos); não ultrapassar os 35% de taxa de esforço, sendo também apontado o rendimento máximo mensal de 2000 euros — classe média? (30 pontos); a idade média do agregado ser inferior a 35 anos — e se for 36? (seis pontos); e, por fim, a existência de uma criança com menos de cinco anos no agregado — e se for seis ou 12? (14 pontos).

Sabemos ainda que termos como regeneração ou revitalização, utilizados para atrair mais pessoas a zonas ainda aquém da sua capacidade de rentabilização, são, neste caso, usados no campo da habitação como modo de mascarar a gentrificação que ainda está por fazer naquelas ruas estreitas e escuras. Aqui, pretendem fazer esse aburguesamento e essa valorização do solo através da escolha específica de um certo tipo de agregado familiar. Ou seja, não só não vão à raiz do problema como também elaboram uma resposta que compactua com o estado da arte. Ao desconstruirmos o processo deste sorteio percebemos que a visão da Câmara do Porto para o Morro da Sé é coerente com o processo corrente de gentrificação, propondo, no entanto, fazê-lo a médio e longo prazo, com os locais. Trata-se, por um lado, da zona da cidade de onde provêm o maior número de pedidos de ajuda à habitação, cerca de 30%; e, por outro, é nesta freguesia que são praticados os valores mais altos, atingindo o preço médio de venda de 2081 euros por metros quadrados. Não seriam estas 15 casas um início da resposta à crescente lista de pessoas a necessitar de ajuda habitacional?

Este sorteio nasce a par do Programa de Arrendamento Acessível (PAA) lançado pelo Governo Central para “dar resposta às novas necessidades habitacionais”. O vereador do urbanismo da CMP apoia-se nesta iniciativa para alegar que os preços das habitações a sorteio são mais baixos do que os propostos pelo PAA. Parece-nos importante desmistificar o erro de leitura por parte do executivo municipal ao comparar as duas iniciativas porque, ao passo que o PAA se trata de um incentivo a privados, o sorteio joga com o património público. É perversa a premissa, principalmente no domínio das instituições públicas, de que uma habitação para ser considerada acessível, tenha apenas de ter um aluguer 20% abaixo do preço de mercado.

Ora, se os preços do mercado não são controlados, como é que a categoria acessível é calculada em sua função e não em função dos rendimentos das famílias? Quando a Câmara e o Estado parecem agir mimeticamente com a conjectura do mercado, quem é que age de acordo com as necessidades da população residente? Dita a Constituição que as rendas deveriam ser compatíveis com os rendimentos familiares e a nova Lei de Bases diz que o património público deveria ser utilizado para dar resposta aos mais vulneráveis. No entanto, o sorteio e também o PAA parecem passar ao lado destas alíneas e encaixar-se na lógica neoliberal da financeirização da habitação.

São bastantes as questões que surgem à medida que desconstruímos o processo, mas, mais do que uma enumeração de casos, interessa pôr em causa esta iniciativa pública na sua génese. Dado o ritmo corrente destes processos, a linha de acção da Câmara parece coerente com a marca que a cidade vende, é o Porto. que nos coloca a todos à mercê da especulação imobiliária. O acesso das famílias a habitações condignas está assim entregue au hasard, neste Porto sem sorte, sorteado.

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