Em 2020, a Berlinale foi hoje e aqui

Houve muito grande cinema no “festival do tema”, com um sem-número de filmes notáveis a concurso e fora dele, e onde a arte ganhou ao didactismo – apesar de um ou outro escorregão como There Is No Evil.

70º Festival Internacional de Cinema de Berlim
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Favolace, de Fabio y Damiano D'Innocenzo DR
,Mohammad Rasoulof
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There Is No Evil, de Mohammad Rasoulof,There Is No Evil, de Mohammad Rasoulof DR,DR

Já o dissemos aqui vezes suficientes para não termos de repetir que, para o 70.º aniversário, o festival de Berlim fez a festa e deitou os foguetes. Foi, para nós, a melhor edição dos últimos anos, e uma que literalmente não deu descanso – um dia antes do palmarés ainda estávamos a ser surpreendidos por uma programação que abriu com Jia Zhangke e Cristi Puiu e fechou com Rithy Panh e Mohammad Rasoulof, quando em anos anteriores o “balão” começava a perder o gás a meio da semana. E quando Tsai Ming-liang e Rithy Panh nos fazem esquecer que neste concurso já tinha havido Kelly Reichardt e Eliza Hittman e Caetano Gotardo e Marco Dutra e Abel Ferrara…, isso é sinal de uma bela safra berlinense como há muito não sentíamos.

Mas talvez o mais interessante da competição principal, só agora que a imagem do quebra-cabeças está montada por inteiro, é que Berlim se renovou sem se renovar. Este continua a ser um festival “de tema”, sim; mas onde as edições anteriores apostavam no didactismo acima da arte, o que em 2020 importou é que houvesse cinema. Isto é, um agenciamento de sons e imagens e representações que funciona primeiro enquanto objecto artístico e só depois como portador de uma mensagem.

Como no “cerco” permanente da câmara de Hittman à sua heroína em Never Rarely Sometimes Always, sempre procurando quebrar a barreira que ela própria cria para se defender do mundo; como na contemplação da solidão e do desejo que propulsiona Days de Tsai; como no desfile de fantasmas que ainda não perceberam estar já mortos e que preenchem a velha casa paulista em Todos os Mortos de Gotardo e Dutra; como no sangue e na água que perseguem o Franz/Francis de Welket Bungué em Berlin Alexanderplatz de Burham Qurbani.

Não que não tenha havido um arremedo do “velho” modo de fazer tema na competição 2020: There Is No Evil, de Mohammad Rasoulof, coloca todo o savoir-faire que conhecemos do cinema iraniano ao serviço de quatro histórias tenuemente ligadas pela temática da pena de morte. Numa cinematografia que nunca foi parca em grandes artistas, e à qual Berlim teve sempre especial atenção, Rasoulof – que as autoridades iranianas impediram de viajar para apresentar o filme – pecou sempre por ter uma mão demasiado pesada, demasiado didáctica. There Is No Evil são duas horas e meia de melodrama com o coração no sítio certo, mas incapaz de encontrar outra forma de o pôr em imagens sem reciclar, sem o mesmo talento, os leit-motifs de cineastas como Abbas Kiarostami ou Jafar Panahi (ai os carros, ai as paisagens desertas...).

Dentro do género, preferimos-lhe o inclassificável drama negríssimo dos irmãos italianos D’Innocenzo, Favolacce, filme que pinga desprezo e condescendência pelas suas personagens adultas e horror pelo modo como elas tratam as crianças. Favolacce gira à volta do Verão de três famílias de uma aldeia italiana, gente demasiado preocupada com o estatuto social, com os vizinhos que fingem suportar, com o diz-que-disse dos sítios pequenos, para reparar que estão a passar ao lado do essencial. Passa-se quase hora e meia num filme de 100 minutos sem sequer ouvir a palavra “amor” só um dos pais (o mais humilde, empregado num restaurante) trata o filho como mais do que um simples adereço para a vida perfeita e lhe diz que o ama.

A tragédia, claro, está sempre à espreita nesta “aldeia dos malditos” (a referência não é tão dispicienda como parece), onde os miúdos, quase todos inquietantemente atentos ao que os rodeia, vão de certa maneira ser cordeiros sacrificiais. Favolacce é um filme de “terror social”, ambíguo e perturbante – mais um filme de fantasmas num festival que parece ter tido especial interesse pelos espectros do passado e no modo como eles moldaram o nosso tempo.

Que o mesmo é dizer, uma Berlinale que quis pensar o hoje e o amanhã em função do ontem, mas sempre através do prisma da criação artística a 24 imagens por segundo (enfim, as projecções foram quase todas digitais, mas o/a leitor/a perceberá). E que o fez também nas múltiplas secções paralelas – gostaríamos de ter acompanhado mais de perto a retrospectiva dedicada ao mestre de Hollywood King Vidor, ou o programa do 50.º aniversário do Fórum, quase todo recorrendo às cópias em película do arquivo da secção. Mas o importante era ver o que a Berlinale é, hoje, aqui. E, em 2020, foi muito. E foi bom.

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