Em Berlim, Catarina Vasconcelos conta a história da avó que nunca conheceu
A Metamorfose dos Pássaros, em estreia mundial na nova competição da Berlinale, é um primeiro filme onde a ficção e a realidade se alimentam mutuamente a partir da história da própria família da realizadora.
Era uma vez… um oficial de marinha que foi para o mar. Mas não é dele que fala esta história: é da sua mulher que ficou em casa a criar os filhos e a tornar-se na “âncora” da família — e uma âncora tal que, quando Catarina Vasconcelos (Lisboa, 1986) indicou a sua vontade de fazer um filme sobre ela, alguns dos familiares lhe perguntaram porquê. “E eu dizia-lhes que era porque não tinha conhecido esta pessoa que tinha sido tão importante nesta família. E, com alguma razão, eles perguntavam como é que se pode fazer um filme sobre uma pessoa que não se conheceu...”
Com bastante paciência e a certeza de que era mesmo esta a história que queria contar, Catarina foi levando o seu barco a bom porto. A primeira escala foi, precisamente, a família — “e houve um lado de surpresa quando lhes mostrei o filme, porque tinha partilhado com eles a sinopse, as intenções, mas não a forma, da qual eu própria não estava muito ciente até começarmos a filmar”. A segunda é, agora, a edição 2020 do Festival de Berlim, onde A Metamorfose dos Pássaros, primeira longa desta cineasta oriunda das Belas Artes e formada no Royal College of Art, tem estreia mundial com honras de encerramento da nova secção competitiva Encounters (primeira de quatro passagens na próxima sexta, 28, às 12h30).
Este será o único título português a concurso este ano no evento alemão, que premiou em anos anteriores Leonor Teles, Miguel Gomes ou João Salaviza — é também um filme que mantém intacta a ideia do cinema que se faz em Portugal como algo de artesanal, de delicada filigrana emocional. Pudera: não é só de Beatriz, a avó paterna que Catarina nunca conheceu, que o filme fala. É também da própria cineasta, que tal como o pai perdeu também a mãe ainda jovem, e de uma ideia de família como passagem de testemunho entre gerações muito distintas.
A ficção do real
“O filme demorou muito tempo a ser feito, cinco, seis anos,” explica em breve conversa com o PÚBLICO, antes de partir para Berlim. “Todas as famílias têm histórias e têm segredos que são invioláveis. Como houve muitas coisas que eles não me contaram, decidi que isso me dava carta-branca para inventar, para preencher os espaços em branco como nos testes escolares. Eu nem sequer queria que eles me contassem! Mas existia uma ideia de memória colectiva — coisas que pareciam muito mais reais quanto mais ficcionadas fossem.”
Isto porque A Metamorfose dos Pássaros não é exactamente um documentário, nem é exactamente uma ficção. A ficção que aqui existe baseia-se sempre em dados reais; o que há de documental é distorcido pelas invenções com que se vão preenchendo as lacunas. O resultado evoca o “realismo mágico” latino-americano mas também a saga familiar que atravessa gerações, aqui amplificada por um jogo de labirintos onde os familiares de Catarina fazem de conta que são os seus próprios antepassados: “Era muito importante perceber o lado de construção de uma família, para perceber como a família se desmorona quando desaparece uma figura tão importante. E só mais tarde percebi como esta história estava tão intimamente relacionada com a minha — o vazio que ela deixou na vida deles era o mesmo que a morte da minha mãe deixou na minha vida. Tornou-se um abrir de cortinas sobre uma história que passa, que é herdada.”
E que é, sublinha-se, uma história feminina — o avô de Catarina, pela sua profissão, estava sempre ausente no mar. “Ele estava um bocadinho fora desta esfera familiar. O pai estava sempre ausente e a mãe de repente era tudo — o que era também muito típico daquele momento da história em Portugal.”
É por isso também que Catarina empresta tanta importância aos objectos que filma insistentemente ao longo do filme. “Quando eu estava a começar a filmar, a casa do meu avô estava em vias de ser vendida. Quis ficar com alguns desses objectos no filme; mesmo que eles acabassem por ser espalhados por muitas mãos diferentes, todos juntos contavam uma determinada história. As mãos e os olhos da minha avó passaram por eles em alguma altura das suas vidas, os da minha mãe também. E eles assumem quase um lado de personagens no filme — como uma passagem de testemunho, em que determinados objectos contam determinadas histórias.” São essas as histórias que Catarina Vasconcelos quis contar.