Os dias de Tsai Ming-liang em Berlim são mais belos do que as noites
Days, o novo filme do realizador malaio-taiwanês, é mais uma pérola para a competição 2020 da Berlinale, e mais uma prova da aposta renovada no cinema de autor. Que também nos trouxe mais uma bela Shakespeareada de Matías Piñeiro.
É verdade que Tsai Ming-liang já é um habitué de Berlim, onde levou o prémio do júri por O Rio (1995) e o Prémio Alfred Bauer por O Sabor da Melancia (2005). É também verdade que o cinema singular do malaio-taiwanês, contemporâneo da “nova vaga taiwanesa” que também nos trouxe Wong Kar-wai ou Edward Yang, partiu em direcções mais difusas e mais exigentes para o espectador, se assim o quisermos dizer. Days é a sua terceira longa em competição em Berlim e dista sete anos da anterior ficção “oficial” de Tsai, Cães Errantes; durante esse intervalo, o realizador fez uma série de filmes abstractos, quase museológicos, acompanhando a “lenta caminhada” de um monge budista interpretado pelo seu companheiro, actor-fétiche e “musa” Lee Kang-sheng, pelo mundo fora.
Ao colocar Days na competição oficial do seu 70.º aniversário, a nova direcção da Berlinale está a fazer ao mesmo tempo uma ponte com o passado e uma afirmação para o futuro, ao colocar em competição um autor que já premiou mas que se afastou numa direcção pessoal e intransmissível. Esta está a ser uma edição com uma presença muito mais forte do cinema dito de autor, com alguns dos seus praticantes mais exigentes, compensando (talvez em demasia) anos anteriores em que a competição se abria a títulos mais mainstream. Alguns resquícios dos anos Kosslick ainda sobrevivem — é o caso da britânica Sally Potter, este ano pela terceira vez em competição com The Roads Not Taken, crónica da demência progressiva inspirada pelo sofrimento do seu próprio irmão mais novo, com Javier Bardem e Salma Hayek, que foi literalmente arrasada pela imprensa presente.
Mas essa inspiração artística retirada da própria vida também ressoa noutros filmes a concurso — já o tínhamos sentido em Siberia de Abel Ferrara, por exemplo, talvez a mais desformatada de todas as entradas competitivas. E ressoa igualmente em Days, filme-guerrilha rodado à socapa na Tailândia com uma equipa reduzida de cinco técnicos e dois actores, que regressa aos problemas de pescoço de Lee Kang-sheng que Tsai filma desde O Rio e nasceu da vontade do cineasta filmar o laotiano Anong Houngheuangsy, um trabalhador ilegal em Banguecoque.
Houngheuangsy interpreta o seu próprio papel, nos seus próprios locais de trabalho, num filme que dilui as fronteiras entre realidade e ficção para funcionar quase como terapia. Não só de quem o fez, mas também para quem o vê, porque há qualquer coisa de bálsamo nestas duas horas de planos longos sem diálogo, uma celebração do que de mais íntimo e banal existe nas nossas vidas. Days força-nos a entrar num outro tempo, a desacelerarmos e a deixar-nos levar por uma câmara que nos convida, apenas, a ver. E a ver no grande ecrã, porque dificilmente um monitor ou uma televisão grande permitem, paradoxalmente, este grau de intimidade.
Também por isso, o filme de Tsai Ming-liang é um gesto em favor de um cinema livre de formatos, capaz de tocar o espectador sem recorrer às muletas tradicionais. É também um filme que nos desafia a pensar no tempo como dimensão essencial do cinema — e por aí faremos inevitavelmente a ponte com a nova “shakespeareada” do argentino Matías Piñeiro.
Depois de Rosalinda, Viola, La Princesa de Francia e Hermia & Helena, Isabella (Encounters) é a quinta entrega de um ciclo onde o bardo de Stratford-upon-Avon é mais pretexto e fonte. Medida por Medida é aqui o ponto de referência, e sobretudo a cena em que a heroína Isabel vai rogar pela vida do seu irmão junto do juiz Angelo, que lhe propõe poupá-lo se ela se deitar com ele. A partir desta cena, escolhida para uma audição para uma nova produção da peça de Shakespeare, Piñeiro constrói uma elegantíssima estrutura temporal mais complexa do que lhe é habitual, organizando o filme de modo não linear ao redor de Mariel (María Villar, magnífica como sempre), que aceita fazer a audição enquanto trabalha como dramaturga e encenadora numa peça sobre as dúvidas e o arrependimento.
Só no final tudo encaixará no sítio (“tudo está bem quando acaba bem”, já dizia Shakespeare), mas enquanto o filme corre, forçando-nos a reavaliar constantemente amizades e relações, Piñeiro vai sublinhando e amplificando a cena de Medida por Medida que lhe serve de centro, lendo-a como um momento-charneira das nossas vidas em que é preciso escolher entre o pragmatismo e a identidade, entre sermos quem somos e quem os outros querem que sejamos, entre a integridade e a cedência. (Ecos de outros filmes desta Berlinale como Never Rarely Sometimes Always ou The Woman who Ran, curiosamente também eles filmes no feminino.) A Isabel de Shakespeare, parece Piñeiro dizer, somos todos nós, porque todos nós temos de escolher. E quem sabe o que essa escolha pode abrir?