A factura da Europa cínica
A Europa sempre se fez de tensões e negociação dura, mas para nosso infortúnio, quem julgava que o egoísmo contabilístico poderia ser limitado em favor de um novo fôlego para o futuro já percebeu que estava enganado.
O quadro financeiro plurianual que os Estados-membros da União Europeia (UE) tentaram negociar no final desta semana era um momento de ouro para se abrir uma nova porta para o futuro. Vencida, pelo menos no essencial, a crise do euro, encaixada com uma razoável margem de conforto a saída do Reino Unido, a UE tinha finalmente condições para projectar o seu poder no mundo e para tapar as fissuras internas de uma década turbulenta.
Para o fazer, porém, precisa de muito mais do que as palavras delicodoces com que os seus líderes mais poderosos gostam de nos iludir; precisa de ambição, coragem e, essencialmente, de recuperar o sentido de destino que ergueu o mercado único, o euro ou os fundos de coesão. Por estes dias, vimos como estamos longe de tudo isso.
Quando é o próprio presidente do Conselho Europeu, o belga Charles Michel, a apresentar uma proposta que faz tábua rasa das indicações do Parlamento Europeu, da Comissão e da maioria dos Estados-membros para tentar satisfazer o clube dos ricos – agora hipocritamente chamados “frugais”, como se os países da coesão fossem esbanjadores –, algo vai mal.
Seria impossível exigir que esse clube pagasse por inteiro o rombo de 75 mil milhões de euros que o “Brexit” vai causar no orçamento; mas entre essa dificuldade e a manutenção das contribuições líquidas em 1% do rendimento nacional bruto ou as exigências sobre os rebates (os ricos dão, mas como dão mais ficam com direito a reaver uma parte) vai uma longa distância. A distância que separa um projecto político comum de uma soma de interesses que se tentam sobrepor.
O Governo tem sido duro nas negociações, como se lhe exige. O bloco dos países da coesão tem mostrado unidade. A proposta de Charles Michel teve para já o mesmo destino do pacote da anterior presidência finlandesa: o fracasso. Ainda haverá muita negociação e o esforço do costume para que, no final, todos possam dizer que ganharam.
Aconteça o que acontecer, porém, aquela ideia que o mercado único beneficia os mais fortes e que as assimetrias daqui resultantes têm de ser mitigadas com políticas de coesão está em retrocesso. Depois do cinismo moral na época da crise (os trabalhadores do Norte contra os preguiçosos do Sul), os mais fortes impõem-se agora pela pressão financeira (os “frugais” do Norte contra os pobres mas “ambiciosos” do Sul).
A Europa sempre se fez de tensões e negociação dura, mas, para nosso infortúnio, quem julgava que o egoísmo contabilístico poderia ser limitado em favor de um novo fôlego para o futuro já percebeu que estava enganado.