A ilusão da liberdade de escolha
Vivemos imersos no paradoxo da escolha. O excesso tanto cria ansiedade — as expectativas são tão inflacionadas, por causa das possibilidades, que imaginamos que a selecção perfeita existe — como paralisa.
Não é, talvez, o melhor exemplo, mas é o que me ocorre. Um dia, infelizmente, foi-me dado para as mãos o catálogo de uma agência funerária. No contexto da morte de um familiar, tinha sido incumbido de escolher um caixão. Havia variações — de dimensão, de cor ou de material — mas, com excepção do custo, na verdade as diferenças não eram assim tão assinaláveis, sendo o padrão o pálido caixão de madeira acastanhado.
É aí que estamos, numa realidade acastanhada. Temos uma imensa paleta de opções para eleger seja o que for, mas parece tudo uniformizado, mais do mesmo. Vai-se ao hipermercado e cada prateleira é um labirinto. Uma garrafa de azeite é uma viagem, virgem, refinado ou puro, bom para o cérebro ou pele, enquanto os preservativos são de látex, plástico, tripa de ovelha, às cores, bolinhas, temáticos, e os iogurtes, bem, é melhor mudar de assunto. Ou vamos até ao Facebook, ao Twitter ou ao Instagram, para aquilatar das diferenças e elas realmente existem, mas rapidamente se chega à conclusão que, no supermercado ou nas redes sociais, apesar das hipóteses ao dispor, a lógica de controlo excludente é muito semelhante.
Vivemos imersos no paradoxo da escolha. O excesso tanto cria ansiedade — as expectativas são tão inflacionadas, por causa das possibilidades, que imaginamos que a selecção perfeita existe — como paralisa. O resultado é que não mudamos tanto quanto imaginamos. Remetemo-nos às opções seguras. Muitas vezes as pessoas nem querem decidir. Querem que lhes digam o que fazer, mas mantendo a aparência que são elas que estão a deliberar. É difícil ser livre e assumir essa responsabilidade. Dizemos que queremos algum risco, mas só até certo ponto. Como nos romances.
Hoje recorre-se aos inúmeros aplicativos de encontros, e a sensação é que se entra num jogo relacional pré-definido, com imagens, informações e algoritmos a tentarem eliminar imprevistos. A geração dos nossos avós queixava-se dos relacionamentos combinados. Agora temo-los sem verdadeiro envolvimento. A ordem familiar não interfere. Mas parece existir um cenário antecipado que evita o acaso, a surpresa, a poesia existencial, a vida tal como ela é feita de casualidades. O amor.
Deixámos de acreditar na verdadeira mudança. O horizonte de esperança é obter um telemóvel, de meses a meses, praticamente igual ao modelo anterior. No mundo digital, ou fora dele, funcionamos em circuitos fechados, comunicando entre idênticos, não nos expondo à diferença, mas julgamos que nunca tivemos tanta liberdade. Claro que há países onde as limitações à mesma são claras e o controle sobre os cidadãos é brutal. Não estamos aí. Aqui as autonomias formais estão garantidas. Mas também há medidas de indução e dominação. A diferença é que não são percebidas como tal. Mais: os cidadãos participam livremente delas, em particular depois do universo digital se ter tornado predominante.
Não entendemos por completo os mecanismos onde estamos inseridos, por isso é difícil mudá-los. Contentamo-nos com sensações de consumo. Até na morte. Mas não tem de ser assim. Uns dias depois do funeral descobri que, no Gana, os caixões têm formas personalizadas, constituindo representações da vida do defunto, revelando uma relação profunda e criativa com a vida. Achei bonito. E lembrei-me de Mário de Sá-Carneiro que escreveu no poema Fim, “que a um morto nada se recusa, e eu quero por força ir de burro!” Nessa altura já pouco importará, mas também não me importava nada de ir de jerico.