Regina Guimarães demite-se e revela “disfuncionamentos” e “desconcertos” após alegada censura
Escritora afasta-se do Conselho Municipal da Cultura do Porto, acusando o órgão de não julgar prioritário a discussão de temas como “censura e liberdade de criação artística”.
Regina Guimarães apresentou a demissão do Conselho Municipal da Cultura do Porto na tarde desta quinta-feira. Na sua carta de demissão, a que o PÚBLICO teve acesso, a dramaturga denuncia o “clima de intimidação” instalado no Teatro Municipal do Porto, criticando a “pusilanimidade” da classe artística portuense, acusando-a de estar dependente de favores artísticos. Como base da sua demissão, a dramaturga considera uma “deplorável fantochada” o facto de este órgão não julgar prioritário “discutir temas tão graves como a censura ou a liberdade de criação artística”.
Tudo começou no dia 3 de Fevereiro, após a direcção do Teatro Municipal do Porto (TMP) ter sido acusada de censurar um texto escrito para integrar a folha de sala — que não chegou a existir — do espectáculo Turismo, da Companhia A Turma, com texto original e encenação de Tiago Correia, que subiu ao palco nos dias 31 de Janeiro e 1 de Fevereiro no Teatro Campo Alegre, no Porto.
Na nota de rodapé que motivou a não exibição da folha de sala, a escritora refere que o antigo vereador Paulo Cunha e Silva inundou os portuenses de “discursos delirantes acerca da ‘cidade líquida’ inspirada no sociólogo Zygmunt Bauman, no intuito de legitimar teoricamente as escolhas políticas na sua área de actuação, positivando, por ignorância ou descarada mentira, uma noção que, para o sociólogo inventor do conceito, consubstancia o horror contemporâneo da perda de laços”. E acrescenta que, “significativamente, o erro — propositado ou involuntário — de Paulo Cunha e Silva nunca foi publicamente denunciado pelos sociólogos da cidade e da sua academia”.
Na sua carta de demissão, a dramaturga regista alguns “disfuncionamentos e desconcertos” de várias entidades após o conhecimento deste caso. Entre estas, Regina Guimarães descreve “as contradições” do Presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, que condenou uma anterior manifestação de alegada censura no Museu de Serralves — relacionada com uma fotografia de Robert Mapplethorpe —, mas que deu, na opinião da dramaturga, “cobertura a práticas idênticas quando elas são detectadas nos equipamentos municipais sob a sua responsabilidade directa”. Uma semana após o incidente, Rui Moreira reiterou a confiança no director do TMP, Tiago Guedes, numa audiência que teve lugar à porta fechada.
Outro dos “disfuncionamentos” apontados pela dramaturga como razão para a demissão prende-se com o “clima de intimidação” vivido no seio do TMP, denunciando que os trabalhadores subscreveram uma “pasmosa declaração” de elogio à chefia “à qual se encontram submetidos”.
Na primeira reacção pública após o incidente, Tiago Guedes garantiu que o texto da dramaturga não tinha sido publicado com a concordância do encenador da peça, Tiago Correia, afirmação posteriormente desmentida pelo segundo, que acusou o director do TMP de “chantagem emocional, coação, ameaça e abuso de poder”. Após a troca de responsabilidades, Tiago Guedes admitiu que foi “um erro” não publicar o texto de Regina Guimarães, reforçando porém que a intenção não tenha sido limitar a liberdade de expressão mas defender a memória do antigo vereador da Cultura da autarquia portuense, que morreu em 2015.
O caso de Regina Guimarães motivou outras figuras a denunciarem anteriores situações semelhantes ligadas ao TMP. A actriz Sara Barros Leitão e o director do Teatro Art’Imagem, José Leitão, denunciaram episódios de “censura” e “abuso de poder” no Teatro Municipal do Porto. Também o artista Miguel Januário lembrou que alguns dos seus stencils foram selectivamente apagados do espaço público por não encaixarem na “narrativa” oficial da Câmara do Porto.
Rui Moreira lamenta demissão
O presidente da Câmara Municipal do Porto lamentou na tarde desta quinta-feira a demissão de Regina Guimarães do Conselho Municipal de Cultura, considerando que a escritora “vai fazer falta”. Rui Moreira acrescentou quando a convidou para fazer parte deste órgão nunca lhe pediu que “avalizasse fosse o que fosse”.
“Tenho pena que não me tenha escrito, ou telefonado, e pedido que agendasse um conselho para tratar deste ou daquele assunto. A Regina foi sempre muito interventiva nas sessões em que participou e sabe bem que nunca, por um momento que fosse, lhe limitei a liberdade. Nunca a censurei, nunca a condicionei!, diz o autarca na missiva.
“Compreenderá que não me sinta, eu próprio, condicionado por uma narrativa que, desculpe, pode ter utilidade política mas não corresponde à realidade”, acrescenta o independente Rui Moreira, numa carta endereçada a Regina Guimarães a que a Lusa teve acesso. Com Lusa