Inteligência artificial em Medicina
A IA veio para ficar na medicina e na saúde. O papel das Faculdades de Medicina na formação dos futuros médicos, equipando-os com as ferramentas necessárias a um desempenho adequado, é inquestionável.
Em 2016, o campeão de xadrez a nível mundial era um software informático chamado Stockfish 8, que tinha sido alimentado com centenas de anos de informação sobre todos os jogos de xadrez alguma vez registados e com a capacidade de examinar 70 milhões de jogadas por segundo. Em 2018, um grupo de investigadores em inteligência artificial (IA) da Google publicou um artigo na Science descrevendo como um algoritmo de IA pode jogar jogos. O programa foi chamado AlphaZero e foi programado para jogar xadrez (entre outros jogos), tendo como única informação o conjunto de regras a que o xadrez obedece. Nada mais. Durante os momentos iniciais após a sua activação, o AlphaZero fez um conjunto de jogadas sem sentido e aparentemente aleatórias. Mas de seguida começou a aprender jogando contra si mesmo. Durante as nove horas seguintes, o AlphaZero jogou quarenta e quatro milhões de partidas contra si mesmo num conjunto massivo de computadores interligados. Nas duas horas seguintes conseguia jogar melhor do que os grandes mestres de xadrez actuais e quatro horas mais tarde batia consistentemente o Stockfish 8 (nessa altura o melhor do mundo): nas primeiras cem partidas obteve 28 vitórias e 72 empates. Não perdeu um único jogo.
Este é um exemplo paradigmático do poder daquilo a que chamamos IA, cuja definição mais simples é a de ser um programa de aprendizagem automática (machine learning) que aprende por um processo chamado aprendizagem profunda (deep learning) e, com a nova informação assim obtida, se reestrutura autonomamente sem intervenção exterior. O software de IA emula muitos aspectos da inteligência humana, como o raciocínio, o conhecimento, o planeamento, a aprendizagem, a comunicação, a percepção e a capacidade de manipular objectos.
Um dos campos particularmente propícios para a utilização de técnicas de IA é o da medicina, devido – entre outras – à capacidade preditiva baseada em análise de grandes bases de dados. Por exemplo, uma das áreas mais estudadas de aplicação da IA em medicina é o do reconhecimento de padrões, por exemplo no diagnóstico da retinopatia diabética, dermatologia, etc. Num estudo recente foi analisada a capacidade diagnóstica de um programa de IA, utilizando uma base de dados de fotografias de 130.000 fundos oculares, devidamente classificados por um grupo de oftalmologistas seniores. As taxas de classificação correcta dos fundos oculares pelo software foram impressionantes, ultrapassando mesmo a de alguns oftalmologistas.
Mas mais importante ainda é o uso destes programas em imagiologia, onde parecem ter um comportamento excelente: um recente estudo analisou a utilização da tomografia computorizada no traumatismo craniano entre Janeiro de 2011 e Junho de 2017, analisando 313.000 exames e respectivos relatórios radiológicos. Compararam-se os resultados de diagnósticos de hemorragias intracranianas, fracturas de crânio, desvios da linha média e efeitos de massa entre o algoritmo de IA (n=21.095) e os radiologistas (n=491), através dos relatórios originais combinados com análises de três radiologistas seniores. Em cerca de 21.300 exames, o software foi ligeiramente superior na sua taxa de diagnósticos correctos e isto em todas as lesões cranianas estudadas.
Um outro campo de aplicação potencial da IA em medicina é o do suporte à decisão clínica. Dado que os algoritmos de IA têm a capacidade de – após análise de grandes bases de dados (big data) – poderem correr os seus algoritmos captando informação que o cérebro humano pura e simplesmente não consegue analisar na sua totalidade, permitem obter informação que pode ser de grande utilidade prática. A equipa que lideramos no Instituto de Saúde Baseada na Evidência, das Faculdades de Medicina e Farmácia da Universidade de Lisboa, desenvolveu, juntamente com a IBM e com a Mundipharma, um programa de IA de apoio ao diagnóstico e tratamento da diabetes mellitus tipo 2 em ambulatório. Designado como WAIDI (World Artificial Intelligence for Diabetes), o programa pode ser questionado pelo médico sobre as melhores opções para o doente, fornecendo respostas baseadas nas características clínicas, demográficas e prognósticas existentes no processo clínico electrónico desse doente individual, combinadas com a melhor evidência científica existente sobre todos os aspectos clínicos da diabetes (ensaios clínicos, revisões sistemáticas da literatura biomédica, normas de orientação clínica, etc.). Deste modo, é possível uma medicina mais personalizada, já que leva em linha de conta as características específicas daquele doente individual, com o benefício daí decorrente de maior eficácia e menor risco das intervenções clínicas.
Uma última utilização potencial (e controversa) da IA é o da emulação do raciocínio clínico, isto é, a reprodução dos processos de pensamento médico. Quando um clínico consulta um doente – que lhe comunica um conjunto de sintomas – e esse médico combina de seguida essas queixas com um conjunto de sinais obtidos no exame físico (auscultação, palpação, etc.), fica na posse de informação crucial para fazer aquilo que se chama o diagnóstico diferencial, a ser confirmado (ou não) pelos resultados dos meios auxiliares de diagnóstico (análises de sangue, imagiologia, etc.). A questão é, portanto, de saber se um algoritmo de inteligência artificial poderia ou não reproduzir este processo de raciocínio através da análise de elevado número de informações disponíveis em bases de dados de grandes dimensões.
Num artigo publicado em 2019 na revista Nature, um conjunto de investigadores chineses e americanos analisaram perto de um milhão e quatrocentas mil visitas a serviços de urgência pediátricos na China de Janeiro de 2016 a Julho de 2017, gerando mais de 100 milhões de dados. Utilizando um sistema automático de processamento de linguagem natural para extracção de dados clínicos relevantes dos processos clínicos electrónicos, o programa de IA foi treinado e comparado com os diagnósticos de urgência de pediatras seniores. O programa de IA obteve excelentes resultados em todas as categorias de dados clínicos: queixa principal, doença actual, exame físico, exames laboratoriais e relatórios de sistemas de comunicação e arquivamento de imagens em que os scores do software excederam 90%, excepto em alguns testes laboratoriais. Em todos os níveis da hierarquia de diagnóstico, o sistema alcançou um alto nível de precisão entre os diagnósticos primários previstos com base nos recursos clínicos extraídos pelo programa e os diagnósticos iniciais dos médicos seleccionados, demonstrando deste modo a sua eficácia clínica.
A IA veio para ficar na medicina e na saúde. O papel das Faculdades de Medicina na formação dos futuros médicos, equipando-os com as ferramentas necessárias a um desempenho adequado, é inquestionável. Neste sentido, a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa criou recentemente um núcleo de Inteligência artificial em Medicina. Queremos (e cremos) que esta seja a semente dum projecto, ainda mais ambicioso, de usar esta nova área do saber na criação de novos modelos, que permitam às futuras gerações estar melhor equipadas para responderem aos grandes desafios e mudanças de paradigma, totalmente irreversíveis, que irão modular a Medicina do futuro.
Instituto de Saúde Baseada na Evidência – Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa