Como as medusas conseguem deixar a “água dormente”
As águas-vivas-de-cabeça-para-baixo lançam pequenas estruturas para a água que matam as suas presas e provocam desconforto aos banhistas.
Havia um mistério nas águas da Florida, das Caraíbas e da Micronésia. Muitos banhistas queixavam-se de que ficavam com uma dormência e desconforto na pele quando nadavam perto de medusas. Mas havia outro pormenor importante: nunca tinham estado em contacto directo com esses animais. Este fenómeno designado “água dormente” também deixou com comichão uma equipa de cientistas dos Estados Unidos e do Japão que decidiu mergulhar neste enigma. A resposta foi encontrada ao microscópio: viram que as medusas da espécie Cassiopea xamachana lançam na água “granadas de muco” que têm estruturas que causam essa sensação tão irritante.
Para desvendar o mistério da “água dormente”, a equipa de cientistas juntou várias provas. Primeira: sabe-se que este fenómeno acontece sempre em ecossistemas de águas costeiras e superficiais, nomeadamente em florestas de mangais. Segunda pista: pelos relatos de vários mergulhadores (e até dos próprios investigadores), a “água dormente” caracteriza-se por deixar uma sensação de dormência e desconforto na pele, sobretudo na zona da cara e no pescoço, mas nunca provoca grandes marcas vermelhas.
“Para mim, é uma sensação que me dá comichão e está mesmo na fronteira da dor, em particular onde a pele é mais sensível”, relata ao PÚBLICO Allen Collins, curador de poríferos e de cnidários no Museu Nacional de História Natural da Instituição Smithsonian, nos EUA, e um dos autores do trabalho agora publicado na revista científica Communications Biology. “Também tenho a ideia de que piora um pouco se sairmos da água, pelo menos até ao desconforto passar, o que demora mais ou menos uma hora.”
Por fim, havia uma terceira prova: no laboratório do Museu Nacional de História Natural da Instituição Smithsonian, havia medusas da espécie Cassiopea xamachana, conhecidas como águas-vivas-de-cabeça-para-baixo devido ao seu aspecto, que libertavam “nuvens de muco” quando estavam mais agitadas ou durante as suas refeições.
Inicialmente, a equipa não estava convicta de que as águas-vivas-de-cabeça-para-baixo fossem as responsáveis pela dormência dos banhistas. Ainda se pensou que os culpados pudessem ser anémonas, tentáculos de outras medusas ou até outros animais marinhos que causam urticária.
Mas como se tinha de encontrar um caminho e eliminar opções, acabou por analisar-se o muco da Cassiopea xamachana ao microscópio. Observou-se que tinha pequenas bolhas turbulentas em circulação. Ao lerem vários artigos científicos, os cientistas também descobriram que o muco desta medusa libertava pequenas massas celulares.
A verdadeira descoberta chegou graças a métodos de imagem mais sofisticados: no muco havia estruturas compostas por milhares de células urticantes que, dentro de si, tinham nematocistos – isto é, armas em miniatura, que contêm cocktails de toxinas presentes sobretudo nos tentáculos. Em forma de concha, essas estruturas, as tais massas celulares chamam-se “cassiosomas”. Podiam ser elas que causavam a “água dormente”.
Fez-se então a prova dos nove: os cientistas provocaram águas-vivas-de-cabeça-para-baixo. Assim que o fizeram, libertaram-se cassiosomas. Ao colocarem-se pequenos crustáceos em contacto com as medusas, percebeu-se que essas estruturas eram eficazes a matá-los. Em análises moleculares, também se concluiu que tinham três diferentes toxinas.
Conclusão: as medusas libertam na água “granadas de muco” que contêm cassiosomas e causam “água dormente”. Estava encontrado o culpado do misterioso fenómeno.
Agitar as águas
“Esta descoberta é ao mesmo tempo uma surpresa e uma solução já há muito esperada para o mistério da ‘água dormente’”, constata em comunicado Cheryl Ames, investigadora na Universidade de Tohoku (no Japão) e também autora do trabalho. A investigadora conta que a sua equipa soube da existência destas estruturas pela primeira vez no Verão de 2015. “Cassiosomas são massas celulares altamente organizadas e auto-sustentadas que se libertam no muco das águas-vivas-de-cabeça-para-baixo e de muitas outras espécies de medusas”, descreve ao PÚBLICO. Agora, viu-se melhor que essas estruturas contêm células urticantes com veneno.
Para Cheryl Ames, esta descoberta poderá contribuir para avanços tecnológicos que terão implicação na segurança tanto de mergulhadores militares como de quem faz mergulho por lazer. “Também é fascinante de uma perspectiva evolutiva, da história natural e da biotecnologia.”
Mesmo assim, a cientista avisa que ainda não se percebeu todo o funcionamento das tais estruturas e elas que podem ser uma parte importante da estratégia alimentar da água-viva-de-cabeça-para-baixo. “Em geral, o veneno das medusas é pouco conhecido e esta investigação é um passo em frente para explorarmos como usam veneno de formas novas e interessantes”, diz Anna Klompen, também do Museu Nacional de História Natural da Instituição Smithsonian e autora do trabalho. A equipa espera que surja um novo campo de investigação a partir deste trabalho. No fundo, estas pequenas massas celulares vieram agitar as águas.