“Dinheiro ou cartão?” Há quem se preocupe que a pergunta tenha os dias contados

Com o aumento da popularidade de sistemas de pagamento digital, começam a surgir preocupações sobre o fim da privacidade e liberdade associada aos pagamentos em numerário. Os pagamentos digitais podem ter o mesmo anonimato que os em moedas ou notas?

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Há quem tema o fim do pagamento com notas e moedas Eric Gaillard/Reuters

Em 2020, é fácil passar um dia a comprar coisas sem tocar em notas ou moedas — desde o galão e torradas ao pequeno-almoço em alguns cafés da cidade à série que se está a ver no portátil. Paga-se em cartão, com a câmara do telemóvel, ou através de carteiras digitais com cada compra associada a um número de telemóvel, conta bancária, nome ou número de contribuinte.

Muitas vezes, estes sistemas são mais seguros dada a existência de algoritmos que detectam, automaticamente, tentativas de fraude ou comportamento suspeito. Só que há grupos de activistas que alertam sobre os problemas com o fim do dinheiro físico. “O numerário como meio de pagamento é essencial para uma sociedade aberta. É uma válvula de escape num mundo cada vez mais intermediado e vigiado”, escreveu Jerry Brito, presidente executivo da organização não-governamental Coin Center, num relatório sobre a importância de meios de pagamento privados.

O argumento é que a natureza peer-to-peer do numerário (uma transição directa de uma pessoa para outra) requer pouca confiança. “Pode ser necessário ver se o dinheiro não é falso, mas não é necessário a autorização de entidades externas”, lê-se no relatório. “Isto é importante para pessoas que não podem abrir facilmente contas bancárias porque não têm rendimentos estáveis, um bom historial de crédito, cartão de cidadão, ou uma morada permanente.” E em alguns países as mulheres não conseguem abrir contas bancárias sem autorização dos maridos. 

Para Brito, é importante promover o “desenvolvimento de numerário electrónico” que não requer autorização. Dá o exemplo da bitcoin, a primeira das criptomoedas, criada para ser transferida de forma anónima entre utilizadores em qualquer parte do mundo sem uma entidade central. Apesar das controvérsias em redor da bitcoin, que tem um valor altamente volátil e soma histórias de lavagem de dinheiro, a equipa do Coin Centre lembra que algumas moedas e sistemas de pagamento digital não têm o mesmo objectivo.

Na China, onde 80% dos pagamentos já são feitos através de redes sociais como o WeChat Pay, o governo prepara-se para lançar uma versão digital da moeda chinesa renmimbi. O país já é conhecido por recolher grandes quantidades de informação dos cidadãos, com Pequim a desenvolver um sistema de hierarquização social a partir dos dados pessoais recolhidos pelas aplicações móveis. A pontuação pode determinar o acesso ao emprego o lugar num comboio ou até a descoberta de um parceiro sexual. Uma moeda completamente digital daria ainda mais informação ao Governo. 

Fora da China, o Japão também já anunciou planos para a criação de uma versão digital do iene. A ambição de criar um sistema de dinheiro digital é partilhada por gigantes tecnológicas. Em Junho de 2019, o Facebook anunciou planos para lançar uma moeda digital com o apoio de uma associação de empresas e organizações não-governamentais (muitas já desistiram). Mas os reguladores temem o envolvimento da rede social no sistema tendo em conta o seu historial com notícias falsas e abuso dos dados dos utilizadores.

A equipa do Coin Center reconhece que as preocupações podem ser precoces e que há um longo caminho até uma sociedade sem notas ou moedas (cashless) com protecções legais em muitos países que dificultam sistemas de controlo autoritário. “Mas vigilância eterna é o preço da liberdade”, lê-se nas conclusões.

Para já, pagar em “dinheiro ou cartão” continuará a ser uma opção.

Correcção: a versão inicial da notícia trocava a moeda chinesa, que é o renmimbi. 

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