O amor que não cabe numa selfie
O amor genuíno, das vidas a sério, é feliz, mas com intermitências. É o amor que escolhe não desistir e que vai resistindo ao passar da vida. E, às vezes, é o amor que até consegue mesmo durar para sempre.
Talvez por efeito dos nossos dias tão apressados, das imprevisibilidades que nos rodeiam, do imediatismo das referências que nos inspiram, da efemeridade das vivências, ou da descartabilidade das coisas, a verdade é que, num exercício de paradoxo, elevamos cada vez mais a fasquia do amor.
Queremos amores redentores, salvíficos e protectores, que sejam capazes de nos fazer esquecer o resto (o tanto) que corre menos bem nas nossas vidas.
Queremos amores seguros, capazes de neutralizar a incerteza e a precariedade das nossas existências.
Queremos amores que durem para sempre, mas que, ainda assim, não percam a novidade nem caiam na rotina.
Queremos amores que sejam iguais aos dos filmes e, agora, que sejam iguais aos dos “amigos” do Facebook e do Instagram: amores permanentemente felizes e permanentemente apaixonados, como se o amor coubesse, inteiro, numa selfie, com um qualquer mar turquesa como pano ao fundo.
Queremos, enfim, amores perfeitos e uma vida de amor (per)feita!
Mas o amor não cabe mesmo numa selfie, porque as selfies não se fazem nas manhãs rabugentas e de olhos inchados. E não se fazem nas palavras mais impacientes, nem nos olhares mais distraídos, nem nas mentiras piedosas, contadas, apenas, para iludir a crueza da vida.
Não se fazem, as selfies, no cansaço dos fins de tarde, nas contas a pagar ao fim do mês, nos monólogos intermináveis da sogra, ou no sono breve das noites apressadas.
Nem se fazem nos pijamas de flanela a precisar de reforma, na roupa interior de elásticos frouxos, ou nas madrugadas de angústia, passadas na urgência de um hospital pediátrico.
O amor das selfies é o amor feito por encomenda e que enche, nestes dias, as montras das lojas: o amor romântico dos corações encarnados, das flores e das caixas de bombons; o amor algo pueril e ingénuo dos ursinhos de peluche; o amor ardente e apaixonado da lingerie de renda.
O amor das selfies é o amor que se mostra, e se usa, e se gasta, nessa impaciência que sempre temos para com a imperfeição e a demora.
Porque é imperfeito o amor. Cansa-se e cansa-nos. É refilão e, muitas vezes, descuidado. Tem caprichos e exigências. Dá vontade de fugir, mesmo quando só queremos ficar. É inquieto e trabalhoso. Dói e dói-nos, cura e cura-nos.
E é demorado, o amor. Tem, na sua essência, o tempo das coisas que crescem lentamente e que precisam de ser cuidadas para poder crescer.
Mas cuidar do amor é, também, cuidar da mudança: da nossa mudança, da mudança do outro, da mudança do próprio amor.
A mudança que transforma a agitação adolescente, feita de borboletas a voltear na barriga, na tranquilidade madura que se detém num olhar demorado e silencioso.
E que substitui a urgência de dois corpos frementes, pela certeza de duas mãos que se fecham num afago, ao mesmo tempo que troca as juras hiperbólicas e opadas, pelo silêncio simples da cumplicidade.
A mudança que aceita a rotina, e aceita o cansaço, e aceita, mesmo, o tédio de alguns momentos.
Cuidar do amor é cuidar de uma obra sempre inacabada, de uma espécie de edifício multiforme, que se constrói e cresce ao sabor dos tempos. E que, no seu crescimento, nos faz crescer também e nos torna outros. Talvez melhores. Talvez diferentes, apenas.
O amor inteiro, das histórias verdadeiras, não cabe nas selfies nem nas montras de São Valentim. Ou sim, cabe, mas só nalguns dias.
O amor genuíno, das vidas a sério, é feliz, mas com intermitências. É o amor que escolhe não desistir e que vai resistindo ao passar da vida. E, às vezes, é o amor que até consegue mesmo durar para sempre.