Tatuagens: da exclusividade da tribo à generalização da moda

O significado de fazer uma tatuagem mudou. “Nos últimos anos, é moda. É bom para a indústria, mas é mau para a tatuagem”, considera o tatuador Black.

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Med Badr Chemmaoui/Unsplash

Quando estava a fazer a sua tese de doutoramento em Sociologia, em 2006, Vítor Sérgio Ferreira lembra-se de ter falado com um cozinheiro a quem o patrão pedia que escondesse as tatuagens quando estava a trabalhar. Ao final da tarde de quinta-feira, quando se dirigia para o espaço Brotéria, no Bairro Alto, em Lisboa, passou por um restaurante onde, à porta, estavam vários funcionários, entre eles, cozinheiros, e dois tinham tatuagens. O “corpo sob suspeita”, como o apelidou o investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, tornou-se uma moda, constata o tatuador Black. 

A conversa é sobre tatuagens e a moderação cabe ao jesuíta Francisco Mota, director-geral do centro que fica no Palácio dos Condes de Tomar, os restantes convidados são a artista plástica Rita RA e Tiago Silva, do Festival Iminente. Tudo começou quando, há uns tempos, o padre mais velho da casa questionou os restantes sobre tatuagens. A partir daí, foi-se construindo um painel onde cabe Rita RA, que não tem uma única tatuagem no corpo e defende que este é “sagrado” — a relação com o nosso corpo para mim é sagrada”, reforça —, e quem vive das tatuagens e as desenha ou pede para as desenharem no seu corpo, como é o caso de Black. “Para mim, o meu corpo é uma tela”, declara o tatuador.

O diálogo começa com uma contextualização feita por Vítor Sérgio Ferreira sobre o significado das tatuagens noutras culturas, como um rito de passagem ou de ligação a grupos, como o da Yakuza, a máfia japonesa, por exemplo. Por cá, a tatuagem também serve para identificar as pessoas, os soldados que foram à Guerra Colonial e que tatuavam “amor de mãe” ou o local para onde tinham sido destacados; mas também os que tinham uma vida mais boémia como as prostitutas ou os marinheiros; e uma certa criminalidade, enumera o sociólogo.

Viajando até aos dias de hoje, o significado de fazer uma tatuagem mudou. “Nos últimos anos, é moda. É bom para a indústria, mas é mau para a tatuagem”, avalia Black. É “mau” porque perde o significado ao banalizar-se, consideram os intervenientes. “Hoje integrou a indústria corporal”, continua Vítor Sérgio Ferreira. Afinal, a tatuagem tornou-se profissional e asséptica. Já não são feitas em qualquer sítio, mas com todos os cuidados de higiene. Black dá algumas dicas a uma plateia constituída maioritariamente por jovens (quase metade declara, de braço no ar, que já fez uma tatuagem): é preciso olhar para o chão do estúdio e ver se está limpo, confirmar que o tatuador usa luvas, que as agulhas são esterilizadas. Hoje há tatuadores vegan que usam tintas que não são de origem animal nem foram testadas nestes, acrescenta o sociólogo.

Já não são os curiosos que as fazem, por exemplo, os da mesma tribo de motards, mas profissionais de artes visuais, do webdesign, do graffiti, artistas. ​Rita RA, o nome artístico de Rita Rebelo de Andrade, não tatua, mas já teve a experiência de ver o seu trabalho tatuado no corpo de outros. O convite para criar um trabalho que podia converter-se numa tatuagem partiu do Festival Iminente. Durante o evento, o público podia fazer, gratuitamente, tatuagens criadas por artistas. Tiago Silva lembra que houve quem tivesse feito só porque era grátis, mas que também foram feitas por quem queria perpetuar no seu corpo o trabalho de um criador que admirava. Rita RA ainda tem dificuldade em compreender como é que o seu trabalho pode andar pelo mundo no corpo de alguém.

A tatuagem “democratizou-se”, defende Vítor Sérgio Ferreira. Citando um estudo, Francisco Mota informa que nos EUA 50% dos millenials tem uma tatuagem, 30% dos da Geração Z também e a tendência é para crescer. Se há 20 anos, uma tatuagem era uma questão de afirmação, de confronto, de rebeldia, hoje é moda, repete o sociólogo. “Hoje o significado é singular, é individual.”

Além da singularidade, outro valor atribuído à tatuagem é a permanência, vai ficar para sempre o golfinho ou a flor tatuada — por exemplo, as encomendas que Black mais recebe é para fazer o símbolo do infinito ou a palavra “bless” —, mesmo que seja igual à de outras pessoas, tem um significado único para quem a ostenta e, mesmo quando o corpo envelhecer e a imagem perder a forma, continua a ter significado, reforça o investigador. Pelo menos, para aquela pessoa.

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