Eutanásia: Paulo Rangel e o referendo
Foquemo-nos nos projetos que temos em discussão. Respeitemos a opinião de cada pessoa. Mas, sobretudo numa era de ascensão dos populismos tão dados ao antiparlamentarismo, tentemos não atirar farpas à legitimidade por excelência do Parlamento para legislar em matéria de direitos, liberdades e garantias.
Em artigo publicado neste jornal, Paulo Rangel explicou que é convictamente contra a eutanásia. Está no seu direito. Explicou, mais importante, por que razão entende que se impõe a realização de um referendo. Li atentamente os seus argumentos, até porque vejo que estou do lado daqueles a que Rangel chama “parlamentares” com um “modo pressuroso e despachado” que querem tratar da eutanásia “como se de um regulamento se curasse” e que, portanto, o “chocam”.
Não quero continuar a chocar Paulo Rangel, pelo que vou seguir a sua linha de raciocínio e tentar contraditar o que está erigido, parece-me, em factos falsos.
Rangel começa por afirmar, ao contrário de Marcelo Rebelo de Sousa, que não houve um amplo debate nacional sobre a decisão que diz “legalizar a eutanásia”, sendo certo que o que está em causa é despenalizar a eutanásia em situações especiais, fora das quais a eutanásia continuará a ser crime, mas adiante, apesar de o rigor ser fundamental, como Rangel reconhece ao longo do seu texto.
Curiosamente, para provar que não houve o tal debate nacional sobre a eutanásia, Rangel, sem qualquer paternalismo, assume – imagine-se – que grande parte de quem é a favor da eutanásia, no fundo, quer o que já existe, como a recusa do encarniçamento terapêutico.
Não sei onde esteve Paulo Rangel nos últimos anos. Estamos de acordo num ponto: a despenalização da eutanásia em situações especiais é um debate sensível, difícil, que nos convoca a todos e a todas. Acontece que, por isso mesmo, o debate vai longo na sociedade portuguesa e nos partidos, como o PS, que não se limitaram a apresentar o seu projeto de lei na última legislatura, mas a discuti-lo com a sociedade, numa lógica de “portas abertas” ouvindo especialistas de todas as áreas relevantes para a matéria.
Mais importante, este debate não nasceu de cima para baixo. Paulo Rangel omite o Direito a Morrer com Dignidade – Movimento Cívico para a Despenalização da Morte Assistida” (esqueceu-se?). Este movimento cívico, que defendeu a despenalização da morte assistida em Portugal, foi criado há cinco anos, publicando um manifesto assinado por várias dezenas de personalidades das mais diversas áreas da sociedade (permitam-me que recorde João Semedo), o qual redundou numa petição, que foi entregue à Assembleia da República em abril de 2016 com cerca de 8400 assinaturas e, ao contrário do que diz Paulo Rangel, o debate nunca mais parou.
O debate foi intenso e em nada deficitário na sociedade, nas universidades, na comunicação social, nas escolas e, claro, no Parlamento. À discussão num Grupo de Trabalho que durante meses ouviu juristas, gente da ética, médicos, entre tantos outros participantes, juntaram-se projetos de lei de quem entendeu, democraticamente, dizer sim à petição. Os projetos de lei foram chumbados onde isso deve acontecer: no Parlamento.
Como já escrevi noutro texto, no dia 11 de março de 2016, foi publicada uma sondagem no Expresso segundo a qual 67,4% dos portugueses são favoráveis à eutanásia. Apesar disso, mantivemo-nos firmes na recusa de referendar uma questão complexa de direitos fundamentais.
Penso que dará jeito a alguns pretender que não houve debate, dará jeito dizer que isto de decidir se é ou não proporcional continuar a perseguir criminalmente quem, salvaguardados pressupostos rigorosos, ajudar outrem a abreviar a sua morte numa situação de doença incurável, é coisa para retirar do espaço mais nobre da decisão democrática: precisamente o Parlamento.
Depois, Paulo Rangel não resiste e acaba com o terror: avisa – e chama-lhe “balanço” – que na Holanda já se propõe que aos 70 anos de idade se receba uma pílula e pronto.
Convidava Paulo Rangel a ler os projetos de lei que efetivamente vão ser debatidos em Portugal antes de acenar com pílulas holandesas.
O caminho trilhado até aqui permitiu recolher múltiplos contributos, construindo, com humildade democrática, um projeto de lei atento ao que de positivo e de negativo a experiência internacional nos oferece. Aqui, a esse propósito, temos a vantagem de não sermos os primeiros a legislar sobre as condições especiais em que a eutanásia não é punível, o que permite avaliar e afastar o denominado argumento da rampa deslizante, com base nos resultados dessas experiências. Foquemo-nos nos projetos que temos em discussão. Respeitemos a opinião de cada pessoa. Mas, sobretudo numa era de ascensão dos populismos tão dados ao antiparlamentarismo, tentemos não atirar farpas à legitimidade por excelência do Parlamento – atribuída constitucionalmente – para legislar em matéria de direitos, liberdades e garantias.
Honremos o Parlamento. Mesmo quando queremos muito que uma lei seja chumbada.
Não vale tudo.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico