Os afectos contra a política
O partido que esteve melhor no IVA da electricidade foi o BE. Projectou um ar de seriedade, o que já não é pouco nos tempos que correm.
“No reino do kitsch exerce-se a ditadura do coração. ( … ) O kitsch faz-nos vir duas lágrimas de emoção aos olhos, uma logo a seguir à outra. A primeira diz: Que coisa bonita, crianças a correr num relvado!
A segunda diz: Que coisa bonita, comovermo-nos como toda a humanidade se comove quando há crianças a correr num relvado!
Só esta segunda lágrima é que faz com que o kitsch seja o kitsch. ( … )
O kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os partidos e de todos os movimentos políticos.”
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser
Milan Kundera é um dos espíritos mais lúcidos que a Europa produziu nos últimos cinquenta anos. Romancista de génio permite-nos, através da sua obra, aceder à compreensão dos aspectos mais recônditos e complexos do tempo que vivemos. A Insustentável Leveza do Ser projectar-se-á decerto no futuro como um dos livros de referência da segunda metade do século XX europeu.
Na citação em epígrafe Kundera elabora uma magistral reflexão sobre a natureza do discurso político prevalecente na época contemporânea. Esse discurso adquiriu características absolutamente patológicas nos regimes totalitários comunistas. Kundera aborda a questão de modo soberbo neste livro. Não é esse, porém, o tema que nos interessa agora. Tão pouco nos importa abordar o conceito designado pela palavra kitsch, palavra de origem alemã que se foi progressivamente disseminando como sinónimo de uma vulgaridade pretensiosa destinada a apelar a emoções fáceis e superficialmente compartilháveis.
Kundera confronta-nos com um dos principais problemas que se colocam ao discurso político numa democracia de massas: a propensão para o culto de um registo emotivo que tem o condão de se reproduzir infinitamente anulando, quase inadvertidamente, a dimensão crítica que só a inteligência garante. No mundo da pan-afectividade, nessa dimensão peculiar onde nos estamos sempre a emocionar com as nossas próprias emoções e com as dos outros, deixa de haver lugar para os dois pilares essenciais que são, por um lado, o pensamento e, por outro lado, a realidade. Ambos são demasiado rugosos, contêm demasiados abismos e remetem para demasiadas indeterminações para poderem caber nesse magma de emoções básicas.
Tudo isto se acentuou radicalmente com o advento das redes sociais. No grande mar das paixões e dos afectos coabitam o angelical apelo a uma certa unicidade sentimentalista e ferozes disputas de carácter quase puramente passional. Em lugar do espaço público imaginado e concretizado pelas sociedades demo-liberais, e amplamente aprofundado pelo contributo de correntes mais radicalmente democráticas, temos agora um espaço semi-público e semi-privado onde prevalecem narcisismos de toda a espécie e particularismos tribais fechados a qualquer tipo de disputa argumentativa. Em 1983 Milan Kundera desconhecia o glorioso mundo das selfies. Hoje em dia é quase só nesse mundo que nos movemos.
Num texto publicado recentemente Paulo Tunhas faz uma consideração deveras interessante acerca da relação entre duas atitudes de espírito, a ironia e a gravidade, que habitualmente são percebidas como quase antitéticas. Na sua perspectiva, elas devem ser entendidas, e sobretudo praticadas, como complementares. Justifica-o de forma muito incisiva: a ironia sem a gravidade origina o cinismo; a gravidade sem a ironia gera a pomposidade. Nos últimos dias, ao assistir ao debate parlamentar sobre o Orçamento do Estado, dei comigo a projectar esta consideração de Paulo Tunhas nos discursos e nos comportamentos dos deputados de vários quadrantes políticos. Ao fim de uma escassa hora tornara-se-me evidente a pertinência do seu raciocínio. Com raríssimas excepções, os discursos dos nossos representantes oscilam entre o cinismo próprio de quem verdadeiramente já não acredita em nada e a pomposidade característica de quem acredita cegamente em tudo aquilo em que acredita. Não parece haver nenhuma frincha por onde entre o ar puro da ambiguidade, da abertura ao contraditório, da aceitação de um módico de incerteza. É certo que o debate político, por definição agonístico, tende sempre a uma polarização nos limites do excessivo. Contudo, o que surpreende agora é a forma tão linear como tudo isto acontece. Tudo parece resumir-se a um confronto, ora entre bandos de fanáticos, ora entre viciados no puro jogo da política, entendida esta como uma esfera destituída de qualquer referência exterior a ela própria.
Isso ficou particularmente visível no debate sobre a questão do IVA da electricidade. Do Governo e dos seus partidários ouviram-se declarações de uma ridícula pomposidade; de quase todos os demais partidos políticos surgiram sinais de um cinismo desenfreado. O PCP levou esse cinismo tão longe que acabou por se enredar em atitudes e em declarações patéticas. Curiosamente, ou até talvez não, o partido que esteve melhor sob todos os pontos de vista foi o Bloco de Esquerda. Projectou um ar de seriedade, o que já não é pouco nos tempos que correm.