Rui Pinto é um Robin Hood digital
Rui Pinto é raposa, não é gato. Como outros hackers e whistleblowers, indignou-se e arriscou em nome do bem comum. A sociedade ganhou mais do que perdeu.
Li com espanto que as procuradoras do Ministério Público que investigaram o pirata informático cujos roubos estão na origem do Football Leaks e do Luanda Leaks nunca quiseram saber o que estava dentro dos ficheiros.
Vera Camacho e Patrícia Barão, do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, “sempre assumiram o seu desinteresse pelo conteúdo do material obtido pelo hacker”, diz uma notícia do PÚBLICO desta semana. Aí se lê que Francisco Teixeira da Mota, advogado do hacker Rui Pinto (e do jornal desde 1990) explicou que as magistradas “sempre” lhe disseram que o único propósito admissível para acederem aos discos rígidos seria acusarem o hacker de ainda mais crimes.
Roubar não é bonito e é crime. Mas faz sentido ignorar o conteúdo deste crime? Matar é matar. Mas a mãe que mata o pedófilo que violou a filha deve ser julgada ignorando-se as circunstâncias? O pai que mata o condutor bêbado que acaba de esmagar os seus dois filhos deve ser condenado ou absolvido? A adolescente que mata o homem que a viola há anos deve ser condenada ou absolvida?
Dirão: é diferente, porque Rui Pinto é acusado de ter tentado extorquir dinheiro pelos ficheiros. Mesmo que isso seja verdade — esse é o único crime que permite prisão preventiva e por isso ele está preso há mais de um ano — há roubos digitais e roubos digitais.
Um hacker que aceita receber 75 mil euros para perturbar eleições — como uma investigação da Sábado diz ter acontecido nas presidenciais da Guiné-Bissau —, pode ser posto lado a lado com um hacker que deu um empurrão precioso na luta contra a corrupção em dois países? Um hacker que aceita uma encomenda anti-democrática não é igual a um hacker que expõe gravíssimas faltas de ética.
É mais fácil praticar o Direito como quem atarraxa parafusos. Dá menos trabalho. Mas o caminho certo nem sempre é o caminho obrigatório. O Código de Processo Penal (CPP) diz que “são nulas, não podendo ser utilizadas”, as provas obtidas por “métodos” ilegais. Nesses casos, diz o CPP, as provas só podem “ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo”. No caso, o “agente do mesmo” é Rui Pinto.
Andei à procura de razões para as procuradoras do Ministério Público fazerem uma leitura mecanicista da lei, agarrando-se aos artigos do CPP sem os confrontarem com os valores constitucionais. O problema estará na escola?
O Centro de Estudos Judiciários, por onde passam juízes e procuradores, tem um módulo de Direito Constitucional desde 1994, ao qual foi acrescentado, mais tarde, outro sobre a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Além disso, como me explicou um juiz, “é impossível dar aulas de Processo Penal sem falar dos princípios constitucionais”.
Vinte e cinco anos parecem portanto insuficientes para a justiça portuguesa fazer como a alemã, que já consagrou a regra de o Código de Processo Penal ter de ser “iluminado” pelo direito constitucional. Faltarão outras coisas.
Nas fábulas de La Fontaine, as raposas são sempre espertas e mestres em “astúcias antigas”. Percebe-se bem por que é que a Disney escolheu uma raposa para ser Robin Hood, o herói do folclore inglês que rouba aos ricos para dar aos pobres.
— Se fosses um animal, serias raposa ou gato? — pergunta a Tia Lydia, personagem central de The Testaments, o último livro de Margaret Atwood.
Talvez um gato, responde a colega. Em momentos de aflição, quando os caçadores se aproximam, subia para cima de uma árvore até o perigo passar. É um truque simples e é o único truque dos gatos, mas é útil para salvar a pele. Em contraste, a raposa é a rainha dos truques mas, como arrisca, é apanhada. Não sejas demasiado esperto, aconselha Esopo.
Rui Pinto é raposa, não é gato. Como outros hackers e whistleblowers, indignou-se e arriscou em nome do bem comum. A sociedade ganhou mais do que perdeu. Nas fábulas de La Fontaine, as raposas são sempre inteligentes, mas nem sempre ganham. Não sabemos o que vai acontecer a Rui Pinto mas, com o muito que já nos deu a conhecer, o mínimo é tratá-lo como Robin Hood digital.