Socialismo tóxico
Isabel dos Santos é hoje um “activo tóxico”, mas o real activo tóxico é o Socialismo, que expôs o Estado, dono de tudo, à ganância obscena das cliques privadas que o capturaram. Uma cleptocracia perfeita, foi o que o Socialismo estabeleceu em Angola.
Nos anos quarenta do século XIX, Costa Cabral, chegado a Lisboa em finais dos anos trinta, e desde 1842 ministro do Reino, acumulou em pouco tempo uma fortuna espantosa. Na Câmara dos Pares, o visconde de Fonte Arcada comentou: “As fortunas repentinas são sempre suspeitosas.” Isabel dos Santos alega que começou a trabalhar desde os 24 anos: uma sortuda, porque a maioria de nós começa a trabalhar desde que entra para a escola primária. Isabel dos Santos é um verdadeiro “case study”. Levanta problemas entre a política e a moral, entre o poder e a ética, suscita as maiores interrogações sobre a probidade do Estado em comparação com a probidade da iniciativa privada, e descarna as relações pérfidas e nefastas que podem estabelecer-se entre os privados e o Estado. A respeito destas últimas, nós, no pequeno rectângulo peninsular, estamos bem instruídos: Sócrates e Ricardo Espírito Santo são, também eles, casos de estudo preciosos.
O que mais me fascina e intriga, nos casos referidos, é a ausência de limites para a ambição de riqueza e poder. O poder nunca chega, os milhões e os biliões nunca chegam: quer-se sempre mais poder, quer-se sempre mais milhões. Como os drogados de toda a ordem: nunca chegam a cocaína, a heroína, a morfina, o álcool. O poder e o dinheiro são vícios, vícios muito nefastos; como também o vício do jogo, escalpelizado por Dostoyevsky. Isabel dos Santos sofre desta doença de cura difícil ou até impossível.
Em 1975, Portugal entregou Angola ao MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola. Um Movimento tutelado e financiado pela URSS, o exemplar Estado ou império comunista, onde alegadamente prevaleceriam a frugalidade e a abnegação em favor dos mais pobres. Angola é hoje um território infinito de pobreza, insalubridade e porcaria. Em contrapartida, as “elites” que a governaram em nome do Socialismo enriqueceram espalhafatosamente. José Eduardo dos Santos acumulou, bem como o grupo que o rodeava, uma fortuna milionária roubando a riqueza natural de Angola, deixando ao abandono e à miséria uma população carente de tudo, da saúde aos esgotos, à habitação e à alimentação. Isabel dos Santos é hoje um “activo tóxico”, mas o real activo tóxico é o Socialismo, que expôs o Estado, dono de tudo, à ganância obscena das cliques privadas que o capturaram. Uma cleptocracia perfeita, foi o que o Socialismo estabeleceu em Angola.
Perante tudo o que tem vindo a lume, o PCP mantém-se calado. A obscena “fraternidade socialista” impõe a cumplicidade do silêncio: nada de novo, nada a estranhar. Mas Portugal esteve e continua muito mal nesta história sórdida. O nosso primeiro-ministro, os nossos governantes, remetem tudo para a Justiça, invocando hipocritamente o sagrado respeito pela divisão dos poderes. Teoricamente, estaria bem. Mas, como diria Victor da Cunha Rego, “na prática a teoria é outra”. E a “prática” é que Portugal vive há anos de joelhos perante Angola, exaltando uma “irmandade” que não passa de hipocrisia, fingimento e vergonhosa submissão. Isabel dos Santos usou o nosso país como meio de penetração na Europa e no Mundo. Portugal facilitou-lhe o caminho. Infiltrou-se, com o apoio do nosso governo, nas empresas e bancos que lhe estenderam a passadeira vermelha para ir muito mais além. E ela foi, airosa, por aí fora – até que um consórcio internacional de jornalistas resolveu investigar a prodigiosa ascensão da senhora Dos Santos. A cumplicidade do governo e de empresas portuguesas é descarnada. Estas dizem agora que Isabel dos Santos é um “activo tóxico”… Dá vontade de rir, ou de chorar.
Já várias vezes escrevi a denunciar a hipocrisia presidente à CPLP e à (suposta) especialíssima relação com Angola. As relações entre os dois países azedaram por causa do processo Manuel Vicente. E recompuseram-se quando a Justiça portuguesa vergou a cerviz e se decidiu a devolver a Angola o processo em que aquele senhor era arguido em Portugal. Antes disso, porém, recordemos, Marcelo foi a Luanda por ocasião da tomada de posse de João Lourenço: este nomeou todos os chefes de Estado presentes na cerimónia – até o representante da Espanha, mas omitiu acintosa e malcriadamente o nome do Presidente português! E nós, pedintes e desgraçados, depois desta afronta vergonhosa, retomámos, agradecidos e jubilosamente, as relações fraternas com a antiga colónia…
Deste caso Isabel dos Santos, três conclusões se podem tirar de imediato: o que Max Weber considerava e apelidava de “ética capitalista” é coisa descartável; o Estado e respectiva burocracia não têm mais escrúpulos do que a iniciativa privada; o Socialismo não passa de um abjecto regime santificado pela propaganda – e imposto pela força.