E agora, Joacine e Livre?
Fui ao Congresso animado do propósito de evitar o desastre. Infelizmente, as acusações à deputada foram renovadas e esta reagiu como o país viu. Ainda assim, evitou-se o assassinato em público.
Rui Tavares teve uma contribuição decisiva e luminosa na criação e desenvolvimento do projecto do LIVRE. Sou amigo do Rui e reconheço-lhe as maiores qualidades intelectuais, profissionais, cidadãs e humanas. Revejo-me nos princípios e na acção política do LIVRE, o primeiro partido da esquerda portuguesa que não nasceu da matriz ideológica do marxismo. É universalista e europeísta. Defende a liberdade, a igualdade e a tolerância. Guia‑se pelos valores da justiça social e da justiça ambiental. É humanista, feminista, anti-racista e defende as minorias.
Não conhecia Joacine Katar Moreira. Durante as campanhas eleitorais, conversámos uns escassos minutos durante um jantar. Tornei a estar com ela, quando, durante cerca de cinco horas, a inquiri, como relator de um parecer do Conselho de Jurisdição (CJ) do LIVRE. Falámos ainda uns breves minutos durante o Congresso do último fim-de-semana. Admiro-lhe a coragem, a resistência e a persistência naquilo em que acredita. Lastimo profundamente uma das mais inqualificáveis campanhas que alguma vez surgiu em Portugal em relação a quem acaba de chegar à política.
Das fake news aos falsos perfis, da severidade no julgamento de qualquer deslize à crítica mesquinha a coisas sem a menor importância. Até chegaram a criticar-lhe o penteado! Tanto ódio ou mero desconforto em relação a Joacine talvez não venha de ela ser negra, gaga e de origem pobre. Mas – na minha avaliação, é claro – vem, seguramente, da estranheza com o desassombro de quem não pertence às elites tradicionais. Entre nós, quando alguém põe a cabeça de fora, há quem não resista a cortar-lha o mais depressa possível.
O que provocou este choque trágico entre Joacine e a direcção do LIVRE?
Não foram com certeza as deficiências do processo de eleições primárias. É que Joacine nem queria ser candidata e foram os dirigentes do LIVRE que a convenceram a isso. Também não foram divergências políticas de fundo, nem sobre qualquer proposta política. Joacine tem reafirmado a sua fidelidade aos princípios do LIVRE, e no Parlamento tem-lhes sido fiel. Nem venham com a abstenção no voto do PCP sobre a Palestina, porque, como o CJ concluiu, Joacine agiu de boa fé, convencida que essa abstenção era prudente no quadro das dúvidas que então teve acerca dos considerandos da moção, com a qual, de resto, até estava em substância de acordo.
No parecer acima referido, concluiu-se, por unanimidade, que os problemas surgidos eram de natureza procedimental: “o LIVRE privilegia soluções colegiais, que exigem tempos de debate e maturação com que, às vezes, a deputada não se tem comprometido”; “por outro lado, o Grupo de Contacto também não soube prevenir atempadamente a necessidade de integração da deputada no seu colectivo”.
Assinalou-se que os conflitos gerados eram, na sua quase totalidade, inerentes a uma vida política aguerrida, mas referiu-se igualmente que, nalgumas ocasiões, se adulterara a relação de normalidade do conflito a merecer uma chamada de atenção (apontaram-se duas situações à deputada e uma à direcção do partido). Concluiu-se ainda que não havia evidência de qualquer ilícito disciplinar e apontou-se para a necessidade de serem encontrados os adequados mecanismos de colaboração. Em todo o caso, a avaliação política do que acontecera cabia aos órgãos competentes do partido para esse efeito.
A Assembleia do LIVRE reuniu a 8 e a 9 de Dezembro, tendo a deputada estado presente durante a primeira parte dos trabalhos. Não lhe foi retirada a confiança política, mas foram estabelecidas uma espécie de condições que a deputada devia cumprir. Não me pareceu que fosse a melhor técnica para construir um compromisso, mas foi aquilo que foi decidido. De nada mais soube, até que, no dia 14 de Janeiro, foi comunicado ao CJ que a Assembleia teria decidido retirar a confiança política à Joacine, após ter dado como assente um longo rol de actos da deputada, de natureza procedimental, que inviabilizariam uma relação política.
Sem tomar posição sobre os factos, disse que me parecia errado que fosse tomada tal deliberação na véspera do Congresso e no quadro de uma deliberação para a qual Joacine não fora convocada para se defender. No dia 15 de Janeiro, a Assembleia decidiu levar a deliberação em apreço ao Congresso para efeitos de eventual ratificação.
Logo na comunicação social se difundiu o juízo praticamente unânime de que Joacine era culpada e o seu destino estava traçado. Eu abstivera-me até então de qualquer posição pública sobre o que se estava a passar, até por causa das funções em que fora investido. Mas não podia ficar calado. Nunca me conformei com a injustiça. Alertei, por isso, para a injustiça democrática que estava a ser cometida.
Em nenhum partido democrático do mundo se retira a confiança política à sua única deputada por divergências procedimentais e sem lhe dar a oportunidade de se defender, o que não havia condições nem tempo para poder fazer num Congresso que não fora convocado para esse efeito. Seria uma indignidade.
Fui ao Congresso animado do propósito de evitar o desastre. Infelizmente, as acusações à deputada foram renovadas e esta reagiu como o país viu. Ainda assim, evitou-se o assassinato em público. Por uma escassa maioria (52 votos contra 50), deferiu-se a discussão do problema para os órgãos a eleger no Congresso. O vexame do partido não foi evitado, mas do mal ainda assim ficou o menos.
O LIVRE está numa encruzilhada. Ou é capaz de construir as pontes que até agora faltaram ou fica amputado de uma parte de si. O partido deve ter a ambição de ser plural e de absorver várias maneiras de estar na política e na sociedade. Não tem de ter receio de fazer conviver personalidades dissonantes e até contraditórias. Essa é uma riqueza, não uma fraqueza. Com fidelidade aos princípios, é certo, mas sem esquecer que o bom senso e a tolerância são imprescindíveis quando se desce das alturas dos valores para o concreto das pessoas.