E se fosse possível ver lesões do cancro para além do olho humano?

Equipa de cientistas em Portugal está a desenvolver um programa de inteligência artificial para analisar lesões cancerosas com mais precisão e prever a eficácia dos tratamentos.

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Projecto junta quatro instituições científicas portuguesas RITCHIE B. TONGO/EPA

As más notícias chegam e uma pessoa fica a saber que tem cancro. Seguem-se mais exames às lesões, como ressonâncias magnéticas, que serão depois analisados pelos médicos para se saber quais serão os tratamentos a fazer. E se a este processo se pudesse acrescentar uma análise com mais precisão? A pensar nisso, uma equipa de cientistas em Portugal está a desenvolver um programa de inteligência artificial que analisará imagens das lesões fornecidas pelos exames para além do que o olho humano consegue ver. No final, ao dar informações sobre a gravidade da doença e os tratamentos mais adequados, funcionará como um sistema de apoio às decisões dos médicos. Em testes feitos com imagens de doentes da Fundação Champalimaud, esse programa acertou se um tumor era maligno ou benigno 85% das vezes.

Leonardo Vanneschi vê muito potencial na radiómica, uma subárea recente da oncologia que tem o objectivo de obter características de imagens médicas para lá do que o olho humano consegue ver. Através da inteligência artificial, ajuda os médicos a decidir sobre quais as terapias mais adequadas. “Estas informações podem ser úteis para melhorar o diagnóstico ou perceber melhor a gravidade da doença”, indica o investigador da Escola de Gestão de Informação da Universidade Nova de Lisboa (Nova Information Management School). “Uma imagem [com precisão] da primeira fase do tumor poderá ajudar a limitar o avanço da sua evolução.”

Contudo, o cientista realça que a radiómica ainda não está a ser desenvolvida em larga escala porque é “um processo difícil e complexo”: “Hoje em dia, muitas fases da radiómica são lentas, têm erros e implicam o uso de máquinas sofisticadas [que muitas instituições não têm].”

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Leonardo Vanneschi

Em Setembro de 2018, cientistas da Escola de Gestão de Informação, da Fundação Champalimaud, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e da Universidade de Coimbra começaram então a desenvolver um software para a radiómica. “O objectivo é extrair um elevado número de características quantitativas das imagens médicas, que resultem na conversão dessas imagens em dados prospectáveis, assim como analisar esses dados para apoio à decisão”, refere-se num resumo sobre o projecto denominado “Melhorando a Aprendizagem Profunda Bioinspirada para a Radiómica” (Binder, no acrónimo em inglês). 

Para criar o programa, estão a ser desenvolvidos algoritmos através de redes neuronais artificiais profundas e de programação genética (técnicas de inteligência artificial). Ao usar a aprendizagem profunda e a aprendizagem automática (modelos de inteligência artificial), os “olhos sobre-humanos” deste software – que estarão nos sistemas informáticos dos hospitais – podem ver a densidade da lesão, analisar se está mais ou menos uniforme ao longo do tempo e se há áreas que estão mais ou menos concentradas.

Até agora, já analisou ressonâncias magnéticas de 300 doentes com cancro da mama e rectal da Fundação Champalimaud. A equipa tinha o historial clínico desses doentes, mas o programa não o conhecia. Desta forma, transformou as imagens em números e usou os modelos de aprendizagem profunda e aprendizagem automática para fazer previsões. Mesmo assim, o programa conseguiu acertar 85% das vezes se uma lesão era maligna ou benigna. “São resultados muito positivos, mas à medida que temos mais dados esperamos vir a ter algoritmos mais precisos e eficazes”, assinala Leonardo Vanneschi.

Melhorar a eficácia dos tratamentos

Sobre as dificuldades, o investigador refere que o cancro mais difícil de analisar neste programa é o rectal. “O estado da arte [do cancro da mama] é mais avançado, então é possível obter mais informações.” ​

Algo que também poderá prever-se com uma boa precisão é se a doença vai ser eliminada com determinadas terapias. “Se a resposta é sim, então o paciente pode fazer aquele tipo de terapia e dali a uns meses ter o problema superado.” O programa está a ser treinado com imagens de cancro da mama e rectal porque há muita informação disponível. Os resultados têm sido publicados em artigos científicos.

Já Nickolas Papanikolaou, biomédico e investigador da Fundação Champalimaud, realça que este trabalho será determinante para ajudar os oncologistas a saber de forma mais precisa se um doente beneficiará de uma certa terapia, como a quimioterapia neoadjuvante, um tratamento comum feito antes da cirurgia para reduzir o tumor mamário. “[Este programa servirá] para desenvolver uma estratégia de tratamento individual não invasiva numa fase inicial, melhorando a eficácia do tratamento e reduzindo ou até mesmo evitando os efeitos tóxicos da terapia.”

Comparando este projecto com outros, Leonardo Vanneschi considera que o Binder tem um investimento maior em tecnologia ao nível de tempo e recursos. Ao todo, o projecto tem 240 mil euros da Fundação para a Ciência e a Tecnologia para três anos e para as quatro instituições. “Os novos algoritmos em desenvolvimento deverão oferecer resultados em termos de precisão na previsão e eficiência que não eram imagináveis até há alguns anos”, assinala o cientista.

O grande objectivo do trabalho – que durará mais um ano e meio – é que este programa funcione em todos os tipos de cancro. No futuro, pretende-se também criar uma rede internacional de hospitais e clínicas que querem trabalhar com a radiómica. “Ainda são raras as instituições que trabalham com a radiómica. O objectivo é fazer essa rede e juntar dados, porque para nós, informáticos, quantos mais dados tivermos, mais rigorosos vão ser os algoritmos”, diz Leonardo Vanneschi, italiano que chegou a Portugal em 2011 e já fala num português praticamente perfeito. É dessa forma que nos diz que espera que daqui a quatro ou cinco anos este sistema de apoio à decisão possa ser usado num hospital.

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