Fake news: raciocinar o subjectivo
Procuro guiar a minha vida pela objectividade e, sobretudo, exijo a quem esteja em cargos governativos que tomem as suas decisões usando o critério da racionalidade. Mas negligenciar a crença e a subjectividade parece-me negligenciar uma grande parte do que é ser humano.
A (re)emergência das notícias falsas obrigou-nos, enquanto sociedade, a atribuir reforçada importância à objectividade e à verdade. São vários os programas, nacionais e internacionais, que analisam ideias e declarações no espaço público e lhes atribuem graus de veracidade, de acordo com a falibilidade dos argumentos utilizados. É a reafirmação de dois dos ideais que guiaram o movimento Iluminista: a razão e, por consequência, a ciência.
Não pretendo argumentar contra a razão nem contra a atitude de submeter a critérios racionais (o chamado fact-checking) o que circula no espaço público. Entendo que uma sociedade (bem) informada, capaz de distinguir entre o que é verdade e factual do que é falso ou meramente opinativo, está mais próxima de alicerçar em valores democráticos um outro ideal iluminista, o progresso, manifestado em todas as dimensões sociais. O meu ponto é apenas de preocupação para com o que me parece ser uma desvalorização do papel fundamental da subjectividade e da crença nas nossas vidas, assumindo-os como algo negativo e a necessitar urgentemente de uma intervenção de critérios objectivos e racionais, para serem descartados (caso falhem neste teste) ou transformados em verdades comprováveis.
Simplificando, encaro a crença como um exercício, activo ou passivo, de construção de uma realidade fantasiosa capaz de guiar o nosso comportamento na realidade presente, dependendo das premissas na qual se baseia. A crença que, por exemplo, todo o ser humano deve ser valorizado e respeitado, independentemente da sua cor de pele, género, religião, orientação sexual, idade, país, estatuto social ou outro tipo de categorização pode ser entendida como humanismo (o último dos ideais iluministas, descritos por Steven Pinker em Iluminismo, Aqui e Agora), e tem marcado bastante os nossos tempos. Não me parece ser necessário esperar pela aplicação da racionalidade para chegarmos à conclusão de que devemos viver sobre este mote.
Entrando mesmo dentro da aplicação do próprio método científico, não poderemos designar como crença aquele combustível inicial que energiza e motiva um cientista a colocar à prova uma determinada hipótese que formulou? Neste caso, a sua crença é a de que a hipótese inicial é a que mais se aproxima de uma explicação adequada do fenómeno em estudo, e não uma outra qualquer. Caso a hipótese seja validada por si e por outros cientistas, passa a teoria; caso contrário, volta a ser formulada uma nova hipótese — e o processo repete-se. Parece-me uma impossibilidade (lógica) separar a ciência da crença, já que toda e qualquer teoria científica foi, num determinado momento e antes de ser considerada como lei, uma mera crença de um cientista.
Mesmo em relação à subjectividade, o nosso mundo não parece fazer sentido sem ela. Como refere Yuval Noah Harari no seu Sapiens, o que são as nações, as empresas ou até mesmo o dinheiro senão realidades puramente imaginadas que regulam a nossa vida? Naturalmente que podemos designar as fronteiras físicas do território a que optámos por designar Portugal, ou o local exacto onde a empresa Apple está situada, mas Portugal e Apple não existem no nosso mundo real. Passariam no rigoroso teste da objectividade?
Procuro guiar a minha vida pela objectividade e, sobretudo, exijo a quem esteja em cargos governativos que tomem as suas decisões usando o critério da racionalidade. Mas negligenciar a crença e a subjectividade parece-me negligenciar uma grande parte do que é ser humano.